Assinar
Meio e Mensagem – Marketing, Mídia e Comunicação

A crise está em crise

Buscar
crisis
Publicidade

How To

A crise está em crise

Mesmo vivendo uma crise estrutural, já que também seu modelo de negócios foi atingido pela revolução digital, o mercado gira bilhões de dólares anualmente no Brasil e movimenta negócios, a imprensa profissional e os meios de comunicação - cuidando, criando e consolidando marcas e produzindo riqueza


25 de maio de 2020 - 8h01

Por José Tadeu Gobbi (*)

A publicidade brasileira recebeu a notícia de que foi cancelada a versão de 2020 do Cannes Lions o “Oscar” da publicidade mundial. Em Cannes os grandes players do mercado nacional levam o melhor de nossa produção para competir em pé de igualdade como a melhor propaganda produzida no mundo. Mesmo vivendo uma crise estrutural, já que também seu modelo de negócios foi atingido pela revolução digital, o mercado gira bilhões de dólares anualmente no Brasil e movimenta negócios, a imprensa profissional e os meios de comunicação – cuidando, criando e consolidando marcas e produzindo riqueza
A incerteza é a única certeza

Desde 2016, para se ter um marco temporal, quando em junho o mundo assistiu ao Brexit e ao risco de desconstrução da União Europeia, e em novembro, a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, que a ansiedade dos mercados se aprofundou. Uma sociedade hiper conectada, onde cada indivíduo constrói sua narrativa do mundo, faz a curadoria da informação que quer receber e bloqueia tudo o que sua bolha não compreende, começava a cobrar seu preço. O relevante se torna irrelevante e Zygmunt Bauman (1925–2017) ganha uma atualidade desconcertante ao descrever em sua obra o mal estar pós-moderno quando diz que escolheu chamar de modernidade líquida a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza, a única certeza.

O fator chinês e a destruição criadora no desarranjo da “matrix”

A China se convertera no distrito industrial do planeta e o capitalismo, atrás de uma vantagem competitiva para ganhar escala global, havia integrado a ditadura comunista na cadeia global de valores, tornando a economia chinesa a segunda maior do planeta. A China aproveitou bem a oportunidade e colocou o Vale do Silício no bolso, produzindo tecnologia de ponta e consolidando o conhecimento desenvolvido na California em saltos qualitativos na gestão econômica, segurança, comunicações e em várias áreas estratégicas. A revolução tecnológica criou uma sociedade conectada imersa numa cultura digital que aprofundou o desarranjo da “matrix” e trouxe de forma acelerada o fenômeno que Joseph Schumpeter (1883–1950) tinha teorizado no início do século passado, quando demonstrou o fenômeno da destruição criadora nos ciclos econômicos. Os mercados já não mais respondiam aos estímulos descritos nos manuais de marketing e branding produzidos nos centros de excelência da academia. Os modelos de negócios consolidados e funcionais em vários segmentos da economia desabaram. Milhões de dólares, esforço e tempo para produzir grandes marcas e consolidar um colchão reputacional ficaram vulneráveis.

A tecnologia mudando mentes e o mundo

Na antessala do Brexit e da eleição americana havia um laboratório de humanas da universidade de Cambridge na Inglaterra que, utilizando big data e psicometria, tinha desenvolvido uma técnica identificada pelo acróstico O.C.E.A.N – que a partir do comportamento do usuário na rede e traços de personalidade consegue manipular seus medos, aspirações, convicções e desejos. Tecnologia que foi apropriada por gente que soube aperfeiçoá-la e tirar dela grandes potencialidades e efeitos deletérios. Quem quiser saber mais sobre isto deve assistir The Great Hack ou Privacidade Hackeada disponível na Netflix. Do dia para noite o mundo descobriu que as eleições das maiores democracias do mundo podiam ser influenciadas por interesses geopolíticos e econômicos. Conceitos como pós-verdade onde as percepções se sobrepunham aos fatos e produção de fake news em escala industrial tornaram-se armas para acomodar narrativas destes interesses, tumultuando o ambiente de negócios e colocando as grandes corporações em estado de alerta.

O darwinismo baseado em inteligência e esperteza

O novo ecossistema era inóspito, desconhecido e movia-se por regras não controláveis pelas leis de mercado. Não era mais só ganhar corações e mentes para uma marca, ter um propósito alinhado aos valores da sociedade, do consumidor – era a selva, o darwinismo aplicado não àquele que se adaptou melhor ao novo ambiente ou aquele que foi mais competente e comprometido com a evolução dos negócios e do mercado mas aquele que soube utilizar melhor as ferramentas de controle e manipulação das regras do jogo.

O branding de guerra entra em campo

A publicidade se ressentiu muito disto: a nova realidade onde os pontos de contato da marca haviam se tornado milhões e cada ponto tinha que ser mapeado, monitorado, acompanhado e ações tinham que ser implementadas em ambiente de guerra. Isso praticamente destruiu a visão romântica da publicidade. Não era mais quantificar, mensurar, persuadir e seduzir – era também administrar gabinetes de crise para manter as marcas íntegras e seguras. Instalou-se o branding de guerra onde telas de computadores mostravam dashboards de desempenho minuto a minuto de ações no campo de batalha mercadológico e o marketing tinha que fazer ajustes em tempo real da linguagem, da voz, do posicionamento para que não se perdesse valor e a marca pudesse entregar ao cliente aliado toda promessa combinada. Ao mesmo tempo as agências tinham que se preocupar com o Reclame Aqui, que poderia gerar um vídeo no YouTube que alguém poderia replicar no Facebook e viralizar na rede. Um artigo no Linkedin poderia se converter em perda de capital reputacional e milhões de dólares.

O meio é a mensagem

A indústria da publicidade teve que se preocupar com coisas que antes não faziam parte do seu mix de procedimentos, não era mais só GRP ou a cobertura efetiva, tinha que se preocupar com o SEO, não era só a produção do filme e o elenco contratado, tinha que pensar em UX e UI e na experiência do usuário no contado com a marca no ambiente digital. O encaixe na grade de programação da TV passou a ter a mesma importância que o posicionamento da campanha no topo da busca do Google, se a mensagem foi assimilada como deveria nos fóruns de debates de consumidores, se houve ruído na rede que a pesquisa qualitativa não detectou. Se as redes de relacionamento do trade estão conduzindo a campanha de acordo com o objetivo. Se o SAC do cliente não colocou um mecanismo de Chatbot com IA que torna a vida do cliente um inferno. As agências não conseguem administrar tantos eventos de uma só vez. O ambiente de guerra compromete o desempenho. Já não é mais encantar, seduzir e emocionar como diz Washington Olivetto relembrando os dias românticos da atividade. O jogo é mais bruto e no novo ecossistema sobrevive quem domina melhor as novas ferramentas do ambiente digital.

O mundo enfrenta um freio de arrumação, a crise está em crise

De repente, neste ambiente de guerra o mercado é atingido por uma pandemia, o mundo para e tudo o que se produziu de conhecimento e experiência é colocado a prova. Acionaram um freio de arrumação. A crise está em crise e a redundância explica o momento que vivemos. Grandes marcas correram para se posicionar no novo contexto tentando sair na frente quando o temporal passar. Ter que enfrentar o desafio existencial, de sobrevivência física, da proximidade da morte e do sofrimento, trouxe a humanidade para uma posição de reflexão. A quarentena e o confinamento fizeram as pessoas mergulharem nos seus lares, ver detalhes de sua casa, ter tempo com seus filhos, valorizar a capacidade de cozinhar. A sociedade do consumo, da falta de tempo, de corrida alucinada pelo sucesso parou e está olhando o mundo da perspectiva do camponês. Recuperando valores adormecidos como solidariedade e preocupação com a comunidade, questionando fatores de sucesso, olhando seu guarda roupa cheio de camisas repetidas. Parecem banalidades, mas também o mundo dos negócios e das marcas vai ter que enfrentar este novo homem que sairá desta experiência. E vai ter que entendê-lo e vai ter que alinhar sua ação com a nova visão de mundo. A indústria da comunicação terá que recuperar aquilo que a tornou relevante que é vender sonhos e produtos e também valores de um mundo novo mais estável e seguro, mais limpo e sustentável, mais solidário e equilibrado, enfim um mundo onde o valor da marca esteja em compartilhar com o seu consumidor a visão de um futuro melhor.

(*) José Tadeu Gobbi é Diretor da Target 32 Comunicação e Marketing.

(**) Este artigo foi originalmente publicado no e-book What’s Next produzido pela Caliber Brasil – Gestão de Marca e da Reputação CorporativaMaio/2020.

Publicidade

Compartilhe

Veja também