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12 de maio de 2020 - 10h47
Por Gabriel Lima (*)
Crises como a que estamos vivendo atualmente nos obrigam a fazer uma pausa para pensar nas atitudes que devem ser mudadas desde já, mas também a construir um planejamento em um cenário cheio de incertezas. O isolamento social imposto para controlar a disseminação do coronavírus impacta não só as áreas do conhecimento humano, mas também traz sérias consequências econômicas e políticas que levam a profundas mudanças socioculturais. Muitas destas consequências já nos fazem imaginar como será o mundo depois do Covid-19, pois ao avaliar as crises de saúde anteriores podemos ter uma ideia do que está por vir.
A Peste Bubônica ocorrida na metade do século XIV na Europa foi, segundo alguns historiadores, responsável pela aceleração do fim do feudalismo, pois com menos gente viva no campo para trabalhar, os senhores feudais passaram a valorizar mais as pessoas para manter sua posição. Já a Gripe Espanhola, que começou na Europa durante o final da Primeira Guerra Mundial e reverberou no Brasil, foi responsável pela aceleração do final da República Velha, em 1930, e o início da modernização do país.
Mais recentemente, em 2003, a pandemia de SARS na China aconteceu no momento em que o país vivia uma fase de crescimento acelerado, e esperava-se que o varejo físico se disseminasse na mesma proporção de economias de países desenvolvidos da Europa, EUA e Japão. Porém o que se viu, com as medidas de distanciamento social, foi o crescimento significativo do e-commerce e o desenvolvimento de empresas como o Alibaba e, futuramente, da Tencent, pois ao final da crise os consumidores mantiveram os hábitos adquiridos durante o período de quarentena e passaram a realizar seus pedidos através dos canais online.
Devido às características únicas que estamos vivendo, nada do passado pode servir como base e alicerce para o futuro, mas ao avaliar estas crises de saúde já vivenciadas uma coisa é certa: mudanças acontecerão após a pandemia que estamos vivendo hoje.
Do ponto de vista econômico, diversas iniciativas e comportamentos novos já estão em curso neste momento: O crescimento das transações através do comércio eletrônico, principalmente de categorias até então menos relevantes no segmento como farmácias e supermercados; o fechamento de escolas e universidades que está acelerando a adoção de ferramentas de e-learning e ensino a distância, até então não vistas com bons olhos como alternativas de educação; a mudança na dinâmica de trabalho para uma opção remota com grande aumento no uso de canais digitais para aproximar as equipes; dentre outras mudanças que já estamos começando a ver, como a dos comportamentos de higiene no ambiente de trabalho, a nacionalização de alguns setores industriais fundamentais para a sociedade durante momentos de crise e a aceleração do uso de energias renováveis, possivelmente por uma maior consciência do potencial aquecimento global e da crise ambiental como lição da crise epidemiológica.
Do ponto de vista sociocultural, é possível observar uma valorização na compra de produtos locais e dos estabelecimentos do bairro, a redução do trânsito e a racionalização do ato de sair de casa, uma valorização dos médicos e cientistas, que, com o uso da ciência, estão na linha de frente para o combate ao vírus e ao cuidado das pessoas. Nesta mesma linha temos o crescimento (e regulamentação) da Telemedicina, a valorização da família, uma maior ênfase na higiene pessoal necessária para se manter saudável e também uma possível aceitação da atualização de padrões de privacidade para acompanhamento do isolamento e do monitoramento do contágio.
Por estarmos no meio da fase aguda da crise, ainda é muito difícil apurar qual a probabilidade de cada uma das atuais mudanças de comportamento para estimar qual delas persistirá. Porém com base no panorama atual, em experiências anteriores, levando em consideração a perspectiva histórica e analisando quais dessas mudanças de costumes têm mais facilidade para serem adotadas para a fase do novo normal, já podemos ver mudanças pontuais em diversos setores:
O novo normal nos negócios: foco nas vendas online
O processo de transformação digital que em grande medida já tinha alcançado diversas organizações, mas ainda encontrava algumas barreiras, ganhará um empurrão extra com a crise e deve tornar-se o grande centro das atenções empresariais daqui por diante. As pessoas estão passando boa parte do seu tempo de reclusão conectadas a internet, e os consumidores estão se relacionando com as empresas neste ambiente.
As marcas com uma maior integração físico-digital, mais digitalizadas, estão se saindo melhor. Por outro lado, aquelas que não rejuvenescerem, não se adequarem, estão fadadas a não superar esta crise. Além disso, o e-commerce é um processo irreversível, muitas pessoas que ainda tinham algum tipo de receio nas compras online e que começaram a comprar por causa da crise, passarão a adotar a multicanalidade com mais força.
Itens cuja fricção foi reduzida com as compras online devem estabelecer-se como preferenciais no novo normal, principalmente em categorias como supermercados e farmácias. Por outro lado, o efeito provável de recessão econômica generalizada, e o esforço coletivo na manutenção do emprego, deve gerar uma onda de valorização dos produtos e serviços locais para ajudar na sustentação das micro e pequenas empresas.
Também devemos observar uma descentralização da cadeia de suprimentos, facilitando a superação de crises futuras, favorecendo o comércio local e dando agilidade às entregas das vendas através do comércio eletrônico. Por último, devemos observar uma aceleração da indústria local através de impressoras 3D, que são mais eficientes e permitem, principalmente, que alguns setores chave da economia ganhem em agilidade e redução da dependência do mercado externo. Como consequência de todos estes fatores devemos ver uma redução das transações comerciais internacionais, reforçando alguns dos efeitos políticos de nacionalismo mencionados.
O novo normal no trabalho e gestão: transformação digital acelerada
Muitas empresas têm enfrentado o desafio do distanciamento social adotando práticas de trabalho remoto. Estas práticas, porém, não são novas, e com o advento das tecnologias de comunicação digital já eram comum em muitas organizações. Todavia a crise deve acelerar a adoção destes procedimentos, assim como iniciar o processo de transformação digital dentro e entre organizações, além de impor aos líderes a necessidade de novas maneiras de liderança para atrair e engajar seus colaboradores.
Por fim, esta situação também leva os colaboradores a prepararem suas casas para performar com a mesma excelência do ambiente corporativo, comprando equipamentos como mesas, cadeiras e fones de ouvido.
O novo normal na saúde e medicina: maior uso da tecnologia
Algumas práticas e mudanças comportamentais que estão sendo aplicadas em larga escala atualmente, para enfrentamento da disseminação da doença, devem continuar após a acomodação da crise. Dentre elas, podemos destacar: Tecnologia para testes de doenças em escala como medição de temperatura e testes rápidos realizados em estabelecimentos comerciais como restaurantes, shoppings e lojas de ruas; monitoramento e acompanhamento de pessoas através de seus dados pessoais de celular compartilhado pelas redes de telefonia e centralizados pelos órgãos públicos responsáveis (este aspecto em particular leva ao potencial cerceamento do estado nas liberdades individuais de ir e vir); telemedicina e valorização dos profissionais da saúde.
O novo normal no ambiente urbano: mudança de comportamento
A quarentena e o tempo que as pessoas tem passado em casa estão levantando a reflexões tanto sobre prioridades relacionadas a gastos com itens de baixa necessidade, como com o tempo despendido no deslocamento para a realização de atividades, e também levado muitas pessoas a pensarem de maneira mais pragmática sobre a possível nova onda crítica do aquecimento global, que em muitas maneiras pode trazer consequências ainda mais graves do que a atual.
Neste sentido, a potencial redução no consumo de combustíveis fósseis atual pode ter um efeito mais permanente, levando ao menor uso de automóveis e a um consumo mais consciente. Outro possível efeito que tende a perdurar é a diminuição dos contatos em espaços públicos, como shoppings, restaurantes e locais de grande aglomeração.
As pessoas devem passar a ficar mais tempo dentro de casa e serem mais criteriosas na escolha de suas opções ao saírem. Além disso, as casas tendem a ser maiores e melhor aproveitadas, pois como as pessoas ficarão mais tempo nelas, tanto por suas escolhas quanto pela prática de home office, as moradias devem ser valorizadas.
Uma das consequências da disseminação do trabalho remoto é a diminuição dos escritórios. Com a rotatividade de funcionários nas empresas o espaço físico poderá ser menor para dar mais eficiência aos negócios. Por fim, todas essas medidas devem aliviar de alguma maneira o trânsito nos grandes centros. Somado a isso, também é provável que haja algum esforço na ampliação da distribuição dos horários de movimento (distribuição do trânsito para além dos horários de pico atuais).
(*) Gabriel Lima é fundador e CEO da Enext, consultoria especializada em comércio eletrônico do grupo WPP.