31 de outubro de 2017 - 7h52
Por Luiz Fernando Martins Castro (*)
Uma breve análise da história da humanidade nos permitiria concluir que a ideia de privacidade, enquanto proteção de uma esfera íntima da vida pessoal do indivíduo, é um fenômeno relativamente recente, e raro. Entre os povos primitivos, e mesmo na Antiguidade Clássica, os espaços públicos e domésticos eram ocupados coletivamente, com os habitantes convivendo em espaços comuns, em prédios e cômodos coletivos. Banhos públicos e mesmo a prática sexual em público eram corriqueiros.
Somente na Idade Média é que, por influência da igreja, a reclusão e a intimidade são vistas como forma de elevação espiritual, em contraponto a práticas pecaminosas. O surgimento da imprensa permite a leitura solitária, estimulando as ideias e pensamentos individuais. A Peste Negra, que em meados do século XIV devastou a população na Europa, impôs a separação e o isolamento dos indivíduos, como forma de se evitar o contágio.
Com a Revolução Industrial, no fim do século XVIII, a ascendente classe burguesa passa a cultivar espaços segregados do populacho, surgindo as atuais configurações de residências e cidades, com a perfeita delimitação dos espaços privados. Somente em 1890, os norte-americanos Warren e Brandeis lançam os fundamentos teóricos do direito à privacidade, reconhecendo o direito de se estar só.
No século seguinte, o direito à privacidade é reconhecido como atributo que deve ser garantido pela Constituição e pela lei.
Na contramão desse movimento, o advento das novas tecnologias e da sociedade da informação reescreveram o conceito de se estar só. O Big Brother de George Orwell, do Livro “1984”, está presente em nosso mundo. Tudo o que fazemos está sendo visto e acompanhado em tempo real. O ingresso em locais públicos é controlado, todos os pagamentos e compras que fazemos, e as conversas que mantemos, estão sendo monitorados e registrados. Até mesmo os nossos pensamentos já escapam de nossa esfera secreta quando fazemos uma pesquisa no Google. O computador sabe quem é você, o que você faz, compra, curte, ou não gosta. Algoritmos cada vez mais sofisticados já podem antever o que você vai querer fazer ou comprar amanhã. Muitos poderão alegar que a privacidade, ou a criptografia que protege as comunicações, somente estimulam a prática de atos ilícitos ou moralmente censuráveis, como se fosse possível criar um padrão único de valores e comportamentos, válidos para toda a humanidade.
Mas não é bem assim: nem todas as pessoas ou Estados são puros e bem intencionados. Indivíduos são discriminados, e mesmo perseguidos, por suas preferências políticas, associativas, por sua raça, ou orientação sexual. Existem inúmeros aspectos da vida humana, perfeitamente lícitos, que justificam a manutenção do sigilo na vida pessoal dos indivíduos. Não é por outra razão que a lei impõe o dever de segredo a sacerdotes, médicos, advogados, entre outros.
Em tempos de ampla concorrência tecnológica, o segredo comercial é crucial para a vida das empresas. A privacidade é condição necessária para que haja liberdade de pensamento e expressão, pilares da democracia.
Em tempos de Big Data, e Internet das Coisas, nenhum de nossos atos, ou pensamentos, escapam do controle dos computadores. Sob o argumento de gratuidades, nossos dados pessoais e comportamentais são coletados constantemente, de forma opaca, para fins não declarados.
Para enfrentar esse estado de coisas, vários países já adotam, e o Brasil ainda discute no Congresso Nacional, a aprovação de uma lei geral de proteção de dados. Essas leis, que existem há mais de 40 anos na Europa, e foram revistas recentemente sob as regras do Regulamento Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor em maio de 2018, criam regras mínimas para a coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais, que não são apenas aqueles que identificam as pessoas, mas também aqueles que indiretamente permitem a sua identificação.
Não se podem coletar dados pessoais, ou mesmo de navegação em sites, sem a previa autorização do usuário, que tem o direito de saber claramente o que será feito com dados que lhe dizem respeito, por quanto tempo, e a que tipo de tratamento ou transações estarão sujeitos. Seus dados devem poder ser consultados e corrigidos quando estiverem errados. Dados sensíveis, que são aqueles que dizem respeito à esfera mais íntima da pessoa, como dados de saúde, e orientação sexual, não podem ser tratados de forma nominativa.
Num mundo em que os dados pessoais circulam entre distintos continentes exige-se que os distintos países onde os dados serão tratados e armazenados assegurem o mesmo nível de proteção aos dados pessoais, para se evitar a criação de paraísos sem lei, onde tudo seria permitido.
Não se imagine que uma lei de proteção de dados vá conseguir restabelecer a privacidade a níveis pré-internet. Isso é claramente impossível. Tampouco se ignora o fato de que a economia digital é alimentada por dados pessoais, que valem ouro no mercado, ao permitir a identificação exata dos possíveis consumidores de produtos e serviços, otimizando esforços e investimentos em marketing, aumentando a qualidade e precisão das ofertas.
Mas há de existir limites a empresas e ao Estado, assegurando a transparência aos cidadãos. Sanções pecuniárias elevadas, e mesmo a suspensão de atividades abusivas, devem ser aplicadas a quem não cumpre a lei. O consentimento do cidadão deve ser claro e expresso para que seus dados sejam coletados, tratados e armazenados, e ele deve ter a opção de escolher que tipo de informação pode ser coletada e transmitida entre empresas. E, ainda, o fornecimento de serviços na internet ou no mundo físico não podem estar condicionados à entrega indiscriminada de seus dados.
As empresas também precisam ter clareza das regras aplicáveis para poderem investir e atuar num ambiente seguro e sem surpresas. A proteção dos dados pessoais é assunto de maior importância e deve ser tratado pela esfera mais elevada das empresas. Sem a confiança dos consumidores nenhum negócio ‘on line’ se manterá, estando fadado ao fracasso.
(*) Luiz Fernando Martins Castro é Doutor em Direito e Informática, Membro do CGI.br – Comitê Gestor da Internet.