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O que Anna Delvey e Kat Torres nos ensinam sobre engenharia social

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Opinião

O que Anna Delvey e Kat Torres nos ensinam sobre engenharia social

Como o privilégio de "ser padrão" e alguns estereótipos fazem com que determinadas pessoas nunca sejam colocadas à prova


21 de agosto de 2024 - 13h18

(Crédito: Reprodução/Instagram)

Para quem não sabe, eu sou uma maratonista… de séries. E a da vez foi “Inventando Anna”, uma adaptação de Shonda Rhimes para a Netflix sobre a vigarista Anna Sorokin, também conhecida como Anna Delvey. Ela é o que chamamos aqui no Brasil de uma grande 171, picareta, rica fake. Mas, ‘pera’, depois da série, ela realmente ficou rica e famosa.

Como tudo para mim vira um pouco de hiperfoco, é óbvio que fui ler o artigo original da jornalista Jessica Pressler, peça fundamental para o roteiro de Shonda, que mistura realidade e ficção para temperar o enredo. Anna era uma adolescente com altas habilidades e um quociente de empatia nulo, tão fiel ao seu personagem que nem na prisão conseguia aceitar que não estava no controle.

Ela conseguiu penetrar a alta sociedade nova-iorquina em uma trama sofisticada de omissões e mentiras para construir uma vida de luxo, com bens, festas e relações importantes. A estratégia dela pode ser vista pelo framework RICE – (R)ecompensa; (I)deologia; (C)oerção; (E)go. Todas as relações dela eram baseadas nesses quatro motivadores centrais para qualquer decisão humana.

Na série, é possível ver a dança dessas motivações em todas as conversas, como as gorjetas altas para as pessoas que trabalhavam no hotel, o name-dropping [citar pessoas ou instituições importantes para apontar sua associação com elas] de artistas e obras para socialites que fariam as indicações, ou ainda os choros e dramas para fazer com que, por vergonha, as pessoas cedessem aos seus caprichos.

Por mim, a história de Anna nem precisava de personagens de ligação. Quebrei a cabeça para tentar entender como tudo começou para ela. Três aspectos da jornada dela me surpreenderam:

1. Dar às pessoas o que elas queriam

Quando ela verbaliza incansavelmente que “VIP is better”, ela não está mentindo. Basta olharmos para o Brasil, onde a pessoa nem tem dinheiro na conta, mas, se tiver 10 mil seguidores, já vira para o segurança na balada e diz coisas como “você sabe com quem está falando?”. E ela provou o quanto relações transacionais são efetivas.

2. Parecer com as pessoas que ela fingia ser, mesmo não sendo

Vai uma menina negra tentar se infiltrar na alta sociedade. Automaticamente checariam o background e, na realidade, provavelmente, ainda que vestida de ouro, ela não conseguiria entrar no círculo íntimo.

3. Capital cultural e intelectual a serviço da manipulação

A verdade é que ela é muito inteligente e conhecia as coisas. Sabia escolher tecidos, conhecia a cena artística, mesmo sem ter visitado tantos museus na vida, ela lia muito. E, como dizia o ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels: “uma mentira falada mil vezes torna-se verdade”.

Em junho deste ano, Anna apareceu em uma audiência em Nova York ostentando roupas de grife e uma tornozeleira eletrônica com cristais cravejados. Além disso, Anna mora em uma cobertura de luxo em um bairro de Manhattan, Nova York, e possui amizades com celebridades, como Julia Fox. Ela conquistou um patrimônio milionário aplicando golpes em pessoas que tinham todos os recursos para não serem enganadas, mas se permitiram enganar porque Anna se parecia com eles. No campo da psicologia, chamamos isso de viés de confirmação. Se há similaridade, já damos um passo para confiar.

A série me lembrou outra famosa criminosa, dessa vez uma personagem mais local: a golpista Kat Torres. Ascendendo da infância numa favela em Belém até as passarelas internacionais e as festas com celebridades de Hollywood, Kat se tornou uma guru, lançou um livro autobiográfico, “A Voz”, no qual afirma poder fazer previsões e ter poderes espirituais, e já havia aparecido em programas de TV no Brasil e em fotografias com Leonardo DiCaprio. Nesse caso, a acusação foi mais grave. Kat foi condenada a oito anos de prisão por submeter mulheres ao tráfico humano e a condições análogas à escravidão. Mas ninguém desconfiou dela. Por quê?

O que essas mulheres têm em comum? Elas são inquestionáveis. Seus estereótipos fizeram com que seus passados nunca fossem colocados à prova. Entradas em círculos exclusivos, foram sendo alcançadas uma farsa por vez, uma carinha de indefesa e carente de proteção por vez. Elas têm o privilégio de ser padrão. Isso acontece até com o algoritmo das redes sociais, né? Que entrega mais o conteúdo dessas pessoas. Elas entenderam os códigos sociais desses lugares e literalmente se vestiram a caráter, e isso foi o suficiente para acharem que elas pertenciam.

Do lado oposto, algum tempo atrás, Offset, marido de Cardi B, foi parado pela polícia de maneira violenta, tendo que explicar como “tinha um carro tão caro”. A própria cantora teve que intervir na situação para que as agressões não continuassem. No Brasil, assim como nos EUA, o estilo de roupa, corte de cabelo e, claro, os fenótipos são preponderantes para a leitura social de uma pessoa, influenciando diretamente nas suas chances de ascensão social, e até de chegar viva ao fim do dia.

Esses são exemplos de que o dinheiro não pode comprar tudo, mas o pacto da branquitude, como já diria Cida Bento, pode.

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