Jamily Silva: “Não somos apenas uma cota de diversidade a ser preenchida”

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Jamily Silva: “Não somos apenas uma cota de diversidade a ser preenchida”

A CEO da Somos Preta batalha para que mais creators do Norte, Nordeste e Centro-Oeste sejam reconhecidos


21 de março de 2024 - 14h50

Jamily Silva é CEO da agência Somos Preta (Crédito: Breno da Matta)

Jamily Silva sempre teve uma veia empreendedora. Ainda criança, a baiana vendia seus artesanatos e roupas customizadas em feiras do Recôncavo Baiano. Após a faculdade de Publicidade, entretanto, ela se deparou com um mercado predominantemente branco e masculino, que frequentemente excluía talentos negros. Inconformada, ela decidiu tomar as rédeas e criar suas regras para o jogo. Assim, nasceu a Somos Preta, uma agência que cria soluções de comunicação para o mercado da economia criativa, com foco em diversidade e impacto social.  

Nesta entrevista, Jamily conta as dificuldades que passou para conseguir estudar numa universidade e os desafios da jornada empreendedora. Além disso, ela discute sobre a falta de diversidade regional em projetos com criadores de conteúdo e reforça a importância da pluralidade para o mercado frente à riqueza de talentos criativos do País. 

Primeiro, pode falar um pouco sobre sua trajetória profissional? 

Comecei a trabalhar aos 14 anos e desde cedo me envolvi com empreendedorismo. Minha mãe costumava brincar que eu já dava sinais disso desde os 9 anos, quando fazia bichinhos de geladeira para vender na feira. Sou do interior da Bahia, do Recôncavo, e desde então buscava ter o meu próprio dinheiro, como minha mãe sempre dizia. 

Foi uma jornada difícil, de uma família com poucos recursos e com uma mãe solteira para cuidar de mim e do meu irmão. A universidade, de início, não era uma opção para mim. Mas, convivendo com pessoas diferentes durante um estágio que fiz numa escola, pude vislumbrar essa ideia como possibilidade. Até conseguir entrar na universidade, trabalhei em diversos empregos, desde auxiliar de classe e atendente de padaria a atendente de call center. 

Durante este período, pesquisei muito sobre opções de cursos e de financiamento, mesmo enfrentando dificuldades financeiras e falta de apoio familiar. Foi uma longa jornada até finalmente conseguir o financiamento do FIES. Optei por cursar Publicidade e Propaganda, pois sempre fui elogiada por ser comunicativa e criativa.  

Perdi o FIES em certo ponto do curso, mas me mantive determinada a seguir em frente. A oportunidade de gerenciar o marketing de um shopping em Guarajuba, na Bahia, surgiu inesperadamente, e com o apoio de uma mentora, consegui o cargo. Foi uma oportunidade muito importante, mas a pandemia trouxe novos desafios que me fizeram questionar minha felicidade profissional. Percebi que precisava de uma mudança. 

Como surgiu a Somos Preta? 

Todo esse processo de reflexão sobre minha trajetória profissional começou durante a faculdade, onde o sentimento de exclusão já era muito presente. Sempre me incomodei com a falta de representatividade negra no meio profissional. A vontade de empreender e criar um negócio com propósitos reais de diversidade e inclusão foi crescendo dentro de mim, principalmente ao perceber que pessoas negras nas agências geralmente ocupavam cargos de pouca visibilidade, tinham suas ideias frequentemente invalidadas ou apropriadas por outros, além da desvalorização salarial. 

Essas experiências foram me mostrando que eu não precisava mais aceitar viver dessa forma. Decidi então montar minha própria agência, com propósitos claros de inclusão e diversidade. Mesmo enfrentando dúvidas sobre minha capacidade, busquei apoio de um amigo mais experiente, que me encorajou a seguir em frente. Foi um período de transição. Pedi demissão do emprego no shopping, negociei minha saída financeiramente e me reuni com meus sócios para definir o nome e os propósitos da empresa. 

O nome “Preta” surgiu naturalmente, trazendo consigo os valores e a representatividade que queríamos transmitir. Mas esse período também foi marcado por uma tragédia pessoal, com o falecimento da minha mãe pouco tempo depois do lançamento da empresa. A Preta, então, se tornou não apenas um empreendimento, mas uma jornada de sobrevivência em um mercado racista, misógino e elitista. 

Apesar dos desafios, conseguimos conquistar clientes importantes, como o Itaú, após muito esforço e dedicação. Ainda enfrentamos resistência e falta de compreensão por parte de alguns clientes, mas estamos comprometidos em educar o mercado e promover uma cultura de respeito e equidade. 

Além disso, recebi reconhecimento por meu trabalho, incluindo prêmios como o Bantumen e o Vozes 30 do Papel e Caneta, que destacaram minha contribuição para a economia criativa. 

Pode contar pouco sobre os projetos Jornada Maker Preta e o mapeamento de creators do Norte e Nordeste?

Estamos tocando diversos projetos aqui na Preta, incluindo a Jornada Maker. Ao desenvolver o programa, começamos focando em aspectos psicossociais, seguindo para a introdução de mercado e finanças, para só depois abordar a criatividade. Isso porque percebemos a importância de tratar o aspecto psicológico, visto que muitas pessoas não se reconhecem no mercado por falta de informação e por ele ainda ser dominado por pessoas diferentes delas. Quisemos então entender e explicar o impacto real da economia criativa no Brasil. 

Nossa análise do mercado criativo no País mostrou uma discrepância entre a percepção geral e a realidade, especialmente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Enquanto pesquisas, como a realizada pela Youpix, contabilizam cerca de 20 milhões de criadores de conteúdo no Brasil, com apenas 16% no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, nossa base de dados na Preta sugere um número muito superior nessas regiões. Isso nos levou a questionar as representações da economia criativa no País e buscar parcerias para captar dados mais precisos e refletir a realidade desses lugares. 

Também notamos que, frequentemente, o conteúdo regional é caricaturado pelas grandes agências e marcas do Sudeste e Sul, que buscam perfis que se encaixam em estereótipos de sucesso. No entanto, há uma riqueza de criadores falando sobre empreendedorismo, impacto social, sustentabilidade e saúde, mostrando que o impacto e a diversidade aqui são muito maiores do que geralmente se reconhece. 

Qual é a importância de valorizar os talentos de outras regiões do País? 

Vivemos num mundo repleto de possibilidades, onde muitos talentos acabam sendo negligenciados porque muitas vezes não são reconhecidos pelo que produzem. É gratificante ver criadores de conteúdo regionais prosperando. Mas fica a questão: por que não vemos essas pessoas falando sobre finanças, economia e outros temas tão relevantes, alcançando o mesmo impacto que criadores do Sul e Sudeste conseguem, e com o apoio de marcas? 

Nós, da Preta, conhecemos as respostas e temos como missão fortalecer a economia criativa no Norte e no Nordeste, dando visibilidade a esses talentos. Não queremos ser lembrados apenas em datas específicas ou para falar sobre temas como racismo. Nosso objetivo é mostrar a diversidade e o talento dos criadores dessas regiões durante todo o ano. 

Nossa comunidade é extremamente diversa. Entre os talentos que apoiamos está um pai periférico, músico e criador de conteúdo, que luta diariamente para criar sua filha autista. Temos também uma jovem que, apesar de formada em Moda, escolhe focar na estética popular e negra, mostrando a importância de valorizar a cultura da favela contra preconceitos estéticos. 

Nosso trabalho é sobre revelar essas histórias e talentos, garantindo que não sejam apenas exceções, lembrados esporadicamente, mas sim reconhecidos constantemente pela riqueza que trazem à nossa cultura e sociedade. 

Quais foram os maiores desafios que você enfrentou em sua jornada empreendedora? 

São desafios diários. Recebo muitos “não”, mas vejo isso como uma oportunidade de aprendizado. Lido com questões complexas relacionadas à identidade negra, sempre buscando entender e respeitar as vivências dessas pessoas. Estou prestes a fazer 30 anos e sinto um peso grande, refletindo sobre os quatro anos de luta no empreendedorismo. Apesar dos prêmios e reconhecimento, a estabilidade financeira e qualidade de vida ainda são incertas. Há uma desvalorização do nosso trabalho e das ideias que tentamos promover. 

Temos projetos incríveis que poderiam trazer eventos e visibilidade para a região. Porém, enfrentamos barreiras para tornar esses sonhos realidade, com dificuldades em conseguir apoio das marcas e estabelecer contatos efetivos, mesmo investindo horas em conexões.  

Com sete colaboradores fixos e diversos freelancers, a responsabilidade financeira é grande. Cada manhã começa com a preocupação de garantir novos projetos ou clientes, mantendo a saúde financeira da empresa sempre em cheque. Esse cenário, embora cansativo, é parte de um aprendizado contínuo.  

Encaro cada novo desafio como uma oportunidade de crescimento, tanto pessoal quanto profissional. Mesmo nos momentos de dúvida, quando questiono meu próprio caminho, escolho persistir e aprender com cada obstáculo. Esse é o meu papel, enfrentar esses desafios diariamente, buscando visibilidade e oportunidades para talentos, e tentando mudar a narrativa sobre o que produzimos e criamos. 

Como recado final, desejo que pessoas como eu recebam mais oportunidades e não sejam descartadas por erros. Que valorizem nossa cultura e nosso trabalho, enxerguem-nos com empatia, e não apenas como uma cota de diversidade a ser preenchida. 

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