Consciência negra: ainda falta fazer o básico para transformar o mercado de trabalho 

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Opinião

Consciência negra: ainda falta fazer o básico para transformar o mercado de trabalho 

Olhar propositivo para população negra é a base para um país mais inclusivo 


9 de novembro de 2022 - 9h51

Não tem como eu ir a algum lugar sem a minha cor chegar antes. Inicio a coluna deste mês, dedicado à consciência negra, com uma afirmação que pode parecer pouco clara para quem não nasceu negro no Brasil, mas é bastante óbvia para mais da metade dos brasileiros. 

Somos 56% da população, mas ainda representamos o maior número de pessoas desempregadas, em subocupações e com os menores rendimentos mensais do país, conforme o IBGE. Além dos dados, as implicações da minha cor também podem ser enxergadas na ausência de clientes negros nos restaurantes mais caros, nos cargos de liderança, nos papéis de protagonismo na mídia e em tantos outros lugares em que – quase sempre – só se veem pessoas brancas. 

Isso não é coincidência. E, por isso, não podemos deixar que as pautas ligadas à equidade racial só ganhem destaque em novembro. Todos os anos, neste mês, sou convidada a falar sobre o tema e levantar discussões sobre como transformar esse cenário. Nessas conversas, sempre me perguntam sobre a construção de times mais diversos e inclusivos e o que mais escuto é: “Onde encontrar talentos? Como mapear esses profissionais?”

A minha resposta é outra pergunta: quão propositivo você ou a sua empresa são no que consomem? A minha provocação pretende ressaltar uma questão que passa despercebida, muitas vezes, por aqueles que estão interessados em promover a diversidade nas corporações: a interação com profissionais e projetos para grupos politicamente minorizados. Nesse caso, especialmente a negra. 

Não há outra maneira de encontrar profissionais negros e talentos não-brancos sem enxergá-los, antes, em outros ambientes. Isto é, nos conteúdos consumidos no Instagram, nos programas assistidos, nos perfis seguidos no LinkedIn, nos diferentes projetos acompanhados e compartilhados nas redes sociais. 

A necessidade de mudar o cenário do mundo e do mercado de trabalho é urgente. Como diria Emicida: “é tudo pra ontem”. Então, na coluna deste mês, abro honrosamente o espaço para celebrar e conhecerem mais a fundo alguns talentos que tive o prazer de me conectar nos últimos tempos e que estão fazendo muita coisa potente por aí. Afinal, lutar por uma indústria de comunicação com mais significância é entender que o sucesso só funciona se for coletivo.

 

Lideranças ativas em prol da diversidade são essenciais para a transformação

Adrielly Honório, mulher nordestina afro-indígena, especialista em Gente e Gestão, com foco em processos humanizados e promoção da equidade e diversidade real. Atualmente atua na GUT e foi indicada ao prêmio anual Amigos do Mercado 2022 na categoria Recursos Humanos

Para Adrielly, a inclusão de pessoas negras na comunicação está diretamente relacionada com a ocupação de profissionais negros em cargos de alta liderança. 

“São vários os pontos que precisam ser levados em conta nesse processo de desenvolvimento da população negra dentro da comunicação, mas senti no decorrer a falta de times que representassem mais o que é Brasil. Incluir liderança negra é urgente e não só média liderança, mas a alta também. É o poder de mudar, influenciar e inspirar”, diz. 

“O primeiro passo para a mudança é a intencionalidade. Nada vai ser realmente modificado se a alta liderança não tiver esse olhar de que sim, é necessário, e principalmente, um olhar que não é um favor, como alguns pensam. Abrir as portas para novos talentos é ainda uma dificuldade, afinal, é um mercado que não tem tempo a perder. Mas será mesmo que não haveria tempo de criar uma mentoria interna entre Sênior e Júnior? Desenvolver talentos é uma ótima iniciativa”, acrescenta. 

 

A comunicação precisa ir além da contratação, tem que incluir

Karina Fernandes, diretora de arte na agência Oliver e criadora do projeto Publicitário Periférico 

Após muitos “nãos” do mercado de trabalho, Karina, assim como outros profissionais negros na comunicação, se sentiu enfraquecida e pensou em desistir da área. Mas, com o apoio e o acolhimento de colegas da comunicação, conseguiu superar a questão e hoje impulsiona outras trajetórias como as dela no projeto Publicitário Periférico. 

“Ganhei confiança com o passar do tempo na profissão, principalmente por sentir que meu trabalho estava sendo reconhecido. Antes, tinha muito aquele medo de falar em reuniões, por não me sentir pertencente, mas minha gestora fez um trabalho extenso para mudar isso, para eu me sentir à vontade em falar, e ter meu nome na minha primeira ficha técnica. Meu primeiro prêmio foi como dizer ‘tá, esse lugar é meu sim’”. 

“Por isso, acredito que, se cada um de nós conseguir puxar mais um e oferecer esse mesmo apoio que eu sempre recebi, um dia vamos entrar em uma sala de reunião e não seremos um ou dois, não estaremos todos em cargos juniores, não iremos mais ter medo de não pertencer”, destaca. 

 

História e trajetória únicas

Mirela Lemos – redatora na Adventures, roteirista e jornalista. Escreve sobre cultura no Catraca Livre 

Tendo a vida marcada por ter passado 29 anos usando um oxigênio, devido a um transplante de pulmão, Mirela Lemos teve de transgredir os rótulos atribuídos a ela desde a infância para tomar posse do próprio espaço como profissional.

“Sempre fui uma mulher que nunca foi bem-vinda em nenhum espaço, não somente por ser da periferia e vir de uma família sem nenhuma escolaridade e em sua maioria de pretos, mas por ser uma mulher considerada PCD que carregava sempre um cilindro de oxigênio para poder se manter respirando. Em entrevistas de emprego, ouvi inúmeras vezes que era uma guerreira e um verdadeiro milagre, quando o foco deveria ser nas minhas qualificações profissionais. […] Foi criando uma personagem de cadeirante por meio das minhas próprias experiências que entendi que ninguém poderia me calar, e que outras vozes, assim como a minha, também poderiam ser ouvidas”, conta.

Histórias como a de Mirela ainda são raras, e, segundo a profissional, só serão multiplicadas quando PCDs e outras minorias deixarem de serem vistos apenas como pessoas com limitações e ocuparem espaços de poder, destaque e autonomia. 

“Mesmo após realizar um transplante pulmonar e deixar de usar um cilindro de oxigênio, ainda me enxergo muito sozinha no mercado de trabalho. Quantos transplantados você conhece que estão consolidados no mercado de trabalho? Se a fila da espera de um órgão e o fato de ter um diagnóstico crônico é muito solitário, estar ou voltar ao mercado de trabalho para essas pessoas é ainda pior. Não tem como o mercado de trabalho criar projetos para pessoas com deficiência, quando essas próprias pessoas não têm ‘lugar de fala’. É preciso que mais pessoas falem sobre suas limitações e estejam em cargos de liderança, para mostrarem que são muito além do que a sociedade é capaz de enxergar”, diz. 

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