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A spatial computing transformará a forma como enxergamos a realidade

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Opinião

A spatial computing transformará a forma como enxergamos a realidade

As maiores marcas do mercado já começaram a olhar para esse potencial e incluir em seu pipeline de negócios a possibilidade de instrumentalizar a tecnologia para fidelizar seus cliente


3 de outubro de 2024 - 6h00

Quando se tratam de experiências imersivas, não há hoje nada mais inovador do que o conceito de spatial computing (computação espacial, em tradução livre), tecnologia emergente capaz de transcender os limites entre o físico e o digital pelo fato de permitir aos usuários navegarem em seus dispositivos por meio de gestos naturais, movimento dos olhos e comandos de voz. 

As maiores marcas do mercado já começaram a olhar para esse potencial e incluir em seu pipeline de negócios a possibilidade de, em um curto período de tempo, instrumentalizar a tecnologia para fidelizar seus clientes e angariar novos interessados para seus serviços e produtos, mediante a degustação de experiências imersivas que ofereçam algum tipo de transmutação sensorial, ou seja, concedam ao usuário a capacidade de ver, ouvir e sentir como se tivesse se teletransportado para outro lugar.

O potencial da spatial computing supera os avanços registrados por subsetores mais disseminados dentro desse ramo da tecnologia, conhecidas por termos mais populares, como por exemplo: realidade aumentada, realidade virtual, realidade mista e realidade estendida, o que nos conecta ao fato de estarmos entrando em um período no qual a convergência entre a inteligência artificial e o spatial computing permitirá que as pessoas transformem seus sonhos em realidades compartilhadas, como previu Neil Redding em sua palestra no SXSW 2024, festival anual de tecnologia, inovação, cinema, música e cultura que acontece em Austin, Texas, nos Estados Unidos.

Um dos eventos que colocou no mapa a spatial computing foi o lançamento mundial do Apple Vision Pro, dispositivo que causou frenesi entre os entusiastas de novas tecnologias e gerou uma verdadeira corrida espacial (com o perdão do trocadilho) entre as big techs, que têm acelerado suas pesquisas para desenvolvimento de produtos com capacidades comparáveis. A Meta, com o Quest e, a Microsoft, com o HoloLens, são hoje as principais concorrentes do gadget da Apple, mas gigantes chinesas ameaçam entregar produtos tão ou mais complexos. É um oceano azul a ser explorado.

Ainda não comercializado no Brasil, o produto da Apple se destaca pelo fato de ser o primeiro a oferecer uma sensação de imersão 360º com telas 4K e áudio espacial e motivou, inclusive, a proibição por parte da companhia de que seus desenvolvedores se refiram a ele com qualquer termo ou palavra-chave que não seja especificamente o spatial computing, em uma estratégia nitidamente pensada para tentar colar o conceito à marca da maçã. É proibido também dentro da empresa chamar o Apple Vision Pro de headset.

Toda vez que é lançado um dispositivo que promova tal nível de inovação no mercado, começam a surgir, na esteira, iniciativas em todas as áreas do conhecimento. No primeiro semestre, o ortopedista Bruno Gobbato e sua equipe conduziram, em um hospital de Jaraguá do Sul (SC), uma cirurgia de artroscopia de ombro com o auxílio do Apple Vision Pro. A utilização do dispositivo envolveu o espelhamento de tela para aumentar a resolução da imagem da área operada, a exibição de modelos 3D de referência e a viabilização de consulta, em tempo real, a exames relevantes para a prática invasiva, como ressonâncias magnéticas, por meio de um aplicativo nativo.

Quase na mesma época, em Londres, na Inglaterra, a enfermeira Suvi Verho, da equipe do cirurgião Syed Aftab, realizou, utilizando o equipamento da Apple, uma cirurgia na coluna dorsal de um paciente do Cromwell Hospital. E não somente na ortopedia: existem estudos sobre o impacto do Apple Vision Pro na oftalmologia e pesquisas destacando como o spatial computing tem elevado a prática odontológica a um novo nível.

Práticas envolvendo spatial computing estrearam também no currículo da primeira turma de alunos da Faculdade Sírio-Libanês, em São Paulo (SP). Acadêmicos dos cursos de enfermagem e fisioterapia têm se beneficiado da reprodução de órgãos em 3D no visor de dispositivos que possibilitam a simulação de exames de ultrassonografia em modelos humanos sintéticos.

Um caso similar foi colocado em prática também na disciplina de Anatomia e Neuroanatomia do curso de medicina da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc),  em Criciúma (SC), onde foi desenvolvido um software para que alunos e professores consigam visualizar e manipular, por holografia, todos os sistemas do corpo humano.

Aproveito esse gancho para fazer uma conexão com o potencial da spatial computing para revolucionar outra área do conhecimento essencial para a sociedade. A educação imersiva é descrita por especialistas como uma experiência que posiciona o aluno no centro do aprendizado, como protagonista de seu processo, graças ao desenvolvimento de um ambiente virtual ou real capaz de estimular todos os sentidos.

As possibilidades dentro deste campo são múltiplas. A Meta anunciou em abril que pretende lançar um software para educadores que facilita o uso dos seus óculos em sala de aula. De acordo com a companhia, essas ferramentas darão aos professores acesso a novos apps educacionais e permitirão que eles supervisionem como os alunos estão utilizando os óculos, além de possibilitar que sejam gerenciados, ao mesmo tempo, todos os dispositivos. Uma das ideias divulgadas pela companhia envolve a concepção de experiência imersiva para que os estudantes assistam a reedições de fatos históricos. Seria possível recriar, por exemplo, a apresentação de uma peça de William Shakespeare encenada diretamente do Globe Theatre, na Londres do século 17.

Eu particularmente gosto do projeto de um aplicativo nativo para Apple Vision Pro que está sendo desenvolvido para o ensino da Biologia no Ensino Médio no Brasil, que apresenta ao aluno uma reprodução fiel da anatomia de partes do corpo humano e o convida a interagir de forma ativa com esses órgãos. O aluno poderá, por meio de gestos naturais e intuitivos, extrair cada subdivisão do coração humano e explorá-la individualmente, um grande salto evolutivo na qualidade da informação que é transmitida e no poder imersivo da prática educacional. Além do mais, é possível ir além e utilizar a gamificação para tornar mais atraentes e explicativos os processos de aprendizagem. Os órgãos humanos podem esconder easter eggs, expressão derivada do vocabulário gamer para definir uma surpresa oculta dentro do jogo. 

Para o desenvolvimento pleno da tecnologia, é importante que mais empresas passem a desenvolver apps especificamente desenvolvidos para os dispositivos que estão surgindo. Um dos principais gargalos para a popularização do Apple Vision Pro é a ausência de apps e filmes nativos.

Na medicina, na educação ou em qualquer outra área do conhecimento, as primeiras impressões sobre a spatial computing demonstram que a tecnologia possui um potencial de revolucionar a maneira como enxergamos e nos relacionamos com a realidade. Entendo que essa relação se transformará de forma indelével, principalmente, a partir do momento no qual tais dispositivos tecnológicos continuarem aumentando exponencialmente sua capacidade de nos entregar novas experiências imersivas que se aproximem cada vez mais do que entendemos como real, até um ponto que passemos a enxergá-las como reais.

Nesse sentido, recorro ao artigo “Experiência e linguagem em Walter Benjamin”, de Eloiza Gurgel Pires, pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no qual ela faz uma reflexão a respeito da teoria benjaminiana e explica que, a partir do ponto de vista desse filósofo alemão, considerado um dos principais pensadores do século XX, a linguagem é pensada como campo no qual emerge uma intrincada rede de relações entre conhecimento e experiência. 

Conforme explica Eloiza, o conceito de experiência atravessa toda a obra do autor, e está intimamente conectado ao pensamento de que “todas as manifestações e expressões humanas podem ser concebidas como linguagem e, essa, por sua vez, é então pensada na sua dimensão simbólica, ao contrário do que pretendiam os filósofos do esclarecimento quando apontavam, como condição para o verdadeiro conhecimento, uma racionalidade que separava o imaginário do pensamento”. 

A partir do acolhimento do conceito na imagem, Benjamin nos fala sobre as conexões existentes entre linguagem e experiência que, por sua vez, se relacionam com o campo educativo. Como um visionário em sua área de atuação, já da década de 1930, Walter Benjamin entendia que a estrutura da experiência se encontra na base do conhecimento, um pensamento intrinsecamente ligado ao que estamos prestes a vivenciar com as possibilidades de imersão sensorial trazidas à tona pela spatial computing.

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