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Com prazer vale dois

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Opinião

Com prazer vale dois

Há como morrer aos poucos. Uma receita infalível é trabalhar sem prazer, fazendo de todos dias uma eterna segunda-feira


29 de novembro de 2016 - 9h00

Foto: Reprodução

Foto: Reprodução

O nadador francês Florent Manaudou não gosta de treinar. O prazer dele é ganhar. Bastam duas frases para evidenciar uma certa incompatibilidade entre a ambição do atleta e a dedicação necessária para atingir o objetivo. Manaudou evoca o espírito do baixinho Romário em um esporte individual, veste o traje impermeável da marra e cria uma equação de enlouquecer qualquer técnico. Só que não satisfeito, o francês honra com as suas palavras. Ele ganha.

Nos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres, Florent chegou à final dos 50m livre para ser aquele coadjuvante bacana que acena para a torcida, mergulha e valida o espírito esportivo ao cumprimentar o campeão (que já arrancou a touca, os óculos e urra socando a água). O francês que estava na raia 7, o que torna o feito ainda mais incrível, obteve o melhor tempo de reação na largada e abocanhou a prova, deixando Cesar Cielo em terceiro. Em 2016, os papéis se inverteram, Manaudou chegou ao Rio como o favorito e perdeu a final por um centésimo de segundo. Reformulando: levou a prata, o que para ele não foi o suficiente. Florent anunciou que vai dar um tempo das piscinas, diminuir radicalmente a intensidade dos treinos. Ele tem apenas 26 anos.

Alex Pussieldi, a voz da natação na transmissão dos Jogos, escreveu em seu blog sobre a precoce saída de cena. O título da matéria sintetiza: “Quando o prazer de ganhar é maior do que o gosto pelo esporte”. Ou, como Alex reafirma quase ao fim, Manaudou sucumbiu à falta de amor pela natação. O talento do francês é tão brutal que lhe permitiu liderar a elite por anos, mas seu estilo de nado custa caro aos músculos, às articulações, dói. Aí, você adiciona à receita um punhado de resistência aos treinos, uma pitada de brigas com o técnico e voilá: ele perdeu o tesão de nadar. O caminho não importava mais nem o destino.

No início deste ano, a jornalista gastronômica Alexandra Forbes abordou o suicídio do chef suíço Benoît Violier em um artigo denso, carregado dos dilemas que os renomados chefs enfrentam. Se por um lado, os rankings e guias podem alçar um profissional ao estrelato, por outro eles carregam a pressão, a tensão e uma carga emocional gigantesca para estar sempre no topo. À frente do premiadíssimo Restaurant de l’Hôtel de Ville, Benoít repetiu o ato trágico do chef Bernard Loiseau que em 2003 não suportou a possibilidade de ver o seu restaurante perder uma estrela (e, como consequência, uma margem alta de clientes) e deu fim a uma carreira brilhante.

Vem do delicado e magnífico filme Ratatouille, da Pixar, uma homenagem a Loiseau. Puxando na memória e no Google, relembro-me de que o ratinho Remy tinha como inspiração o chef Gusteau, que faleceu de tristeza após uma crítica do severo Anton Ego. Sem o bordão de Gusteau, que repetia que qualquer um pode cozinhar, Remy não poderia sonhar. E não sonhar é se render aos pesadelos.

Florent Manaudou vai dedicar uma parte do seu tempo ao handebol em busca do prazer do esporte e de uma distância da pressão da mídia. Entendo sua angústia e respeito a sua coragem que a caixa de comentários, o ralo do mundo, diz não existir mais. Alguns bons profissionais saíram das agências por motivo semelhante e quase todos reencontraram um sorriso que parecia anestesiado há tempos. Um deles parece ter criado uma resistência única aos fios brancos.

Dramatizo o exemplo dos chefs porque há como morrer aos poucos. Uma receita infalível é trabalhar sem prazer, fazendo de todos dias uma eterna segunda-feira. Como um noticiário que encerra a sua transmissão com a revoada de passarinhos para que ainda possamos sonhar, recorro ao Remy. Do mesmo jeito que o crítico volta à infância ao provar um singelo prato de ratatouille, é fundamental buscar a razão pela qual escolhemos o nosso trabalho. E torço para que ela seja sempre mais pessoal do que balizada pelo crivo do outro.

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