Para uma nova era do entretenimento, uma nova legislação
O ideal é que se mude o foco. Em vez de focar na tecnologia, o que obriga a uma revisão a cada avanço tecnológico, é preciso pensar em uma lei que trate de conteúdo. Senão daqui a pouco precisa ter a Lei do 5G, a Lei da Internet das Coisas, a Lei do Machine Learning e por aí vai.
Se fosse um ativo em Wall Street, uma resposta definitiva para esta questão valeria bilhões de dólares. Um dos principais estudiosos desse tema foi o jamaicano-britânico Stuart Hall, que considerava duas tentativas principais de resolver esse enigma. Num ensaio chamado de Estudos Culturais: dois paradigmas, Hall conclui que as duas definições são de certa forma incompletas, mas as melhores que temos até agora.
A primeira é dos culturalistas Raymond Williams, Richard Hoggart e E.P. Thompson, para os quais cultura não seria prática social nem soma de costumes, mas a inter-relação entre os elementos que compõem a sociedade, o modo de organização da energia humana percebido nas identidades, nas correspondências ou descontinuidades. E a segunda de estruturalistas como Levi-Strauss, que entenderia por cultura as categorias e os quadros de referência linguísticos e do pensamento com os quais os seres humanos classificam a vida e as relações entre o mundo humano e o mundo natural.
Por que essa discussão filosófica na abertura deste artigo? Porque ela traduz algo que tem a ver com tudo aquilo que consumimos, desde roupas a filmes e séries.
De forma mais popular, percebemos a produção cultural como expressão da identidade de um povo. A tragédia grega, o teatro britânico, o samba baiano ou carioca. A persistência do adjetivo gentílico está aí para comprovar.
Sempre houve contato entre povos que produziram caminhos diferentes sobre hábitos e produtos culturais. O consumo de milho se espalhou pelo mundo a partir da colonização da América espanhola. O uso de papel e seda só se popularizaram depois do europeu chegar à China. E conforme os povos migraram e intensificaram contatos, mais elementos se misturaram.
Por que o futebol se desenvolveu na América Latina e não nos Estados Unidos? Qual a influência dos escritores românticos franceses sobre os literatos ao redor do mundo?
No século 20, a Revolução Industrial atingiu a cultura. Os Estados Unidos se entusiasmaram com a experiência do francês Lumière e montaram uma indústria cinematográfica que se alinhou aos objetivos políticos do governo, sobretudo na era de ouro dos estúdios, como narra de forma detalhadíssima Thomas Schatz em seu magnífico livro “O Gênio do Sistema: a era dos estúdios em Hollywood”.
Escolhas culturais acabam por identificar um povo com uma forma de enxergar a realidade. Seja o final feliz dos melodramas da Era de Ouro de Hollywood ou a coleção de megeras ilustres que maltratam mocinhas virtuosas nas telenovelas brasileiras. Mesmo quem não é fã do gênero já deve ter ouvido falar em pelo menos um grande personagem das nossas novelas, Rainha da Sucata, Carminha, Gabriela, Zeca Diabo ou Odete Roitman.
A indústria de cultura
A indústria de mídia e entretenimento, conhecida nos Estados Unidos como M&E, faturou US$ 717 bilhões em 2018, o que representa um terço do total global, de acordo com pesquisa feita pela PriceWaterhouseCoopers (PwC). Nesta categoria estão inclusos o cinema, programas de TV, comerciais, conteúdo em streaming, música, transmissão, rádio, livros, vídeo games e produtos auxiliares.
No Brasil, o mercado é uma espécie de patinho feio da Esplanada dos Ministérios, apesar de a mesma PwC prever que deve movimentar US$ 52 bilhões até 2022. Em 2019, o Grupo Globo, o maior do país, faturou sozinho R$ 15 bilhões (cerca de US$ 3 bilhões) e é a face visível do entretenimento do país, sobretudo a telenovela que é um produto de exportação e já foi premiado algumas vezes em festivais como o Emmy Internacional.
Afora as gravadoras de disco, os demais setores de entretenimento no país, incluindo aí o cinema comercial, nunca conseguiram decolar como indústrias autossuficientes.
As duas principais experiências foram a Cinédia e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949-1954), que existiu durante os anos 1950 e foi a que mais perto chegou de reproduzir uma experiência como a dos grandes estúdios como MGM e Paramount, com tentativa de fazer filmes comerciais classe A. Foi da Vera Cruz o primeiro filme brasileiro a vencer um prêmio internacional: o Cangaceiro (1953), laureado com a Palma de Ouro em Cannes.
A Cinédia produziu clássicos do cinema nacional como Limite (1931), de Mário Peixoto, mas com a perda de mercado para Hollywood acabou migrando para as comédias românticas de Carmen Miranda, concorrendo com a Atlântida. Ambas conseguiram sucesso de público, mas não de crítica.
Após o período do Cinema Novo, inspirado na Nouvelle Vague francesa, a produção cinematográfica passou a ser controlada pela ditadura militar com a criação da estatal Embrafilme. Sem estrutura industrial, o cinema passou a viver do auxílio governamental.
O governo Collor com poucas canetadas extinguiu a Embrafilme e desorganizou totalmente a produção nacional, a ponto de em 1992 só terem sido lançados 3 longa metragens. O mesmo Fernando Collor sancionou em 1991 a hoje famosa (e achincalhada) Lei Rouanet, destinada a fomento de eventos culturais por meio de renúncia de Imposto de Renda.
Foi ela que permitiu o que ficou conhecido como a Retomada do Cinema Nacional, que produziu pérolas esporádicas, como O Quatrilho, O que é Isso Companheiro e Central do Brasil, todos indicados ao Oscar de filme estrangeiro. Na virada do milênio, apareceu a estética da fome no cinema com obras como Cidade de Deus e Tropa de Elite, ambos sucessos de público.
O grande calcanhar de aquiles da produção cinematográfica nacional foi a distribuição na mão de multinacionais. A história de maior sucesso recente é a da Globo Filmes, que conseguiu um nicho de mercado com as comédias e um ou outro filme biográfico que se vale do elenco da TV Globo e usa uma estética semi-hollywoodiana com um toque de programas de humor global, do qual o maior fenômeno é a trilogia de Minha Mãe é uma Peça, com o papel título interpretado pelo ator Paulo Gustavo.
O fato é que o público brasileiro adotou a televisão, inaugurada por aqui em 1950 com a TV Tupi. Depois chegaram Excelsior, Record e, finalmente a TV Globo, em 1965, que viria a se tornar a grande indústria de entretenimento brasileira, firmando o padrão-ouro das telenovelas, um dos poucos produtos exportados.
Como termo de comparação, a Coreia do Sul também adotou uma estratégia para disseminar sua produção cultural, o que é conhecido por lá como “Korean Wave”, o movimento que começou a espalhar o K-Pop e as novelas coreanas primeiro pela Ásia.
Na virada do milênio, também com contribuição governamental e o empurrão decisivo das redes sociais, o país do sudeste asiático se transformou num forte exportador de entretenimento na forma de séries, animações, música. No Oscar de 2020, o filme coreano Parasita ganhou estatueta de Melhor Filme, Diretor, Roteiro e Filme Estrangeiro, além da Palma de Ouro em Cannes.
Do escurinho do cinema para o da sala de estar
A TV surgiu nos Estados Unidos em 1941 e foi inaugurada com transmissão pública no Brasil em 1950. A maioria dos países tratou a TV, em termos legais, como uma evolução do rádio. As leis de telecomunicações forneciam concessões de frequências, modelo adotado aqui também.
As TVs a cabo iniciaram suas atividades nos Estados Unidos em 1948 como retransmissoras de estações cuja recepção era prejudicada por obstáculos como cadeias de montanha ou edifícios altos. A partir dos anos 1970, começou a se produzir conteúdo exclusivo e os pacotes de assinatura ganharam canais como a CNN. A HBO tornou-se em 1975 a primeira emissora a ser transmitida via cabo em nível nacional, inaugurando a era dos pacotes premium.
Enquanto as TV europeias eram basicamente estatais (BBC, TF1, Deutsche Welle, RAI), a intrincada legislação nos Estados Unidos conseguiu criar um ecossistema bastante complexo, que testou inclusive a TV satelital para áreas remotas. Aqui no Brasil, o maior fornecedor de conteúdo nesta plataforma é a Sky.
Como vimos no meu artigo anterior, a TV a cabo, tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo, está em apuros por causa da internet.
Quem presenciou o começo da tecnologia ainda nos tempos do projeto Arpanet ou dos modems que ocupavam aqui no Brasil a linha telefônica e demoravam uma eternidade para carregar uma página com texto e fotos em baixíssima resolução dificilmente imaginava que a rede mundial de computadores iria assumir o protagonismo e roubar da televisão o posto de meio de comunicação mais consumido.
A questão é que o modelo de negócio da internet se concentrou em investir no aumento de velocidade para massificar a tecnologia e baixar seu preço, transformando de vez o mundo na tal Aldeia Global preconizada por Mc Luhan.
As redes sociais primeiro multiplicaram a velocidade com que os conteúdos podem atravessar o mundo – o que explica em parte desde o sucesso da produção cultural sul-coreana à eclosão das revoltas conhecidas como Primavera Árabe ou a influência em eleições nacionais a partir da campanha de Barack Obama à Casa Branca, em 2008.
Com a popularização dos serviços de streaming a partir de 2011, o intercâmbio cultural se acelerou. Graças aos acordos de conteúdo, os brasileiros tiveram acesso, da noite para o dia, a produções coreanas, alemãs, espanholas, mexicanas.
A era do 5G
Estamos para mergulhar de vez na era do 5G, a quinta geração de tecnologia de internet móvel que, pela primeira vez, vai entregar em termos de performance, tudo o que a TV aberta faz desde os anos 1940, mas com a vastidão de conteúdo característica da internet.
Por isso que todos os dias você é bombardeado com notícias de novos players lançando serviços de streaming. Desde os grupos de comunicação, que têm por base a TV aberta, como o Globo Play, a times de futebol, canais a cabo como ESPN e Disney. Com o 5G, o custo da implantação e do consumo vai cair e a distribuição vai aumentar.
Desde a disseminação da Internet, discute-se o modelo ideal de regulamentação para a rede em nível nacional. Isso porque há uma peculiaridade que causa desconforto em alguns países, inclusive por questões ideológicas: toda a internet converge fisicamente para os Estados Unidos, onde fica o órgão regulador atual, o ICANN (Internet Corporation For Assigned Names and Numbers), uma empresa sem fins lucrativos e de âmbito internacional.
A China optou por ter uma internet fechada e obriga toda empresa estrangeira a ter o Estado como sócio majoritário, o que afugentou do país players como a Netflix. A segunda maior economia do planeta tem suas próprias redes sociais e um “Google” para chamar de seu, o Baidu.
Caminho semelhante está sendo adotado pela Rússia, que já aprovou leis e ensaiou se desconectar da rede mundial. Seria essa a tendência? Redes interligadas em nível nacional mas fechadas em si mesmas?
Na discussão do modelo de governança da internet em disputa entra a preocupação com a disseminação da cultura. Como vimos, num ambiente aberto muitas indústrias morreram antes de atingir a maturidade, como a do cinema nacional. A China não está disposta a correr esse risco. Quer que os chineses vejam Shang-gi como herói salvador do Planeta e não o Capitão América.
Desde o Cinema Novo tentamos por aqui nos livrar do modelo americanizado de fazer audiovisual. Mas nossas referências são tiradas quase sempre da produção cultural norte-americana. E isso não é uma preocupação só de países com menos recursos investidos em cultura como é o nosso caso.
O crescimento de assinantes de serviços de streaming dos Estados Unidos já é uma preocupação até no Reino Unido, onde os produtores locais têm uma oferta bastante consistente em termos de quantidade e qualidade para oferecer ao público local.
O emaranhado legal
Não dá para competir com quase um século de experiência dos Estados Unidos em termos de indústria cultural. Mas um primeiro passo seria lidar de uma vez por todas com o cipoal que é nossa legislação.
O legislador brasileiro agiu de forma reativa à chegada das tecnologias. Lá nos anos 1940, havia a Lei de Radiodifusão. Em 1997, foi criada a Anatel, agência reguladora do setor (uma espécie de FCC dos Estados Unidos), e sancionada a Lei Geral de Comunicações.
As TVs a cabo são reguladas pela Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), de 2011, que restringiu a propriedade cruzada entre as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo (empresas de telefonia e internet), as concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (emissoras de TV e rádio) e produtoras e programadoras do SeAC (TV paga).
Em entrevista para Agência Senado, o professor de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alfredo Manevy, elogiou a Lei 12.485, atribuindo a ela a certa abertura do mercado brasileiro, dando mais espaço à produção independente. O SeAc exige a exibição de certa cota de conteúdo nacional em faixa nobre de programação das TVs a cabo.
Existe no Senado Federal um projeto de lei que revoga as restrições à propriedade cruzada, o que beneficiaria a gigante das telecomunicações AT&T na compra do grupo Time Warner — controlador de marcas como CNN, HBO, e Cartoon Network.
O negócio, entretanto, precisa ter a aprovação dos países onde a empresa atua. No Brasil, a compra seria ilegal devido às vedações presentes no art. 5º da Lei da TV Paga. Até Donald Trump já pediu a mudança para facilitar a operação.
A Claro, que é dona da TV a cabo e de uma operadora de celular também, defende a extinção da Lei do SeAC.
Existe ainda a Lei de Serviços de Valor Agregado de Comunicações, como os aplicativos, sobre os quais incidem tributação menor e menos regulação por parte da Anatel.
O ideal é que se mude o foco. Em vez de focar na tecnologia, o que obriga a uma revisão a cada avanço tecnológico, é preciso pensar em uma lei que trate de conteúdo. Senão daqui a pouco precisa ter a Lei do 5G, a Lei da Internet das Coisas, a Lei do Machine Learning e por aí vai.
Quem olha a legislação tributária brasileira fica pouco esperançoso no que diz respeito a essa racionalização. No entanto, esse seria um caminho importante para nos dotar de um arcabouço legal que permitisse o florescimento de um ecossistema menos dependente de auxílio estatal, sempre limitado, para um país com um enorme mercado consumidor de entretenimento.
Porque no pano de fundo disso tudo está, de novo, o conceito de valor de Nação, formação de cultura, princípio da identidade nacional.
Ou a gente faz isso ou muito em breve em vez de Odete Roitman e Viúva Porcina, Capitão Nascimento ou escolas de samba, veremos desfiles de cheerleaders no Sambódromo e novas gerações que nunca ouviram falar de atores famosos brasileiros, mas sabem recitar todos os astros do K-Pop.
(*) Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet.