O espírito do SXSW
Reflexões de uma semana imersa na capital mundial da esquisitice
Reflexões de uma semana imersa na capital mundial da esquisitice
15 de março de 2024 - 17h29
É difícil “cobrir” o SXSW. São muitos eventos dentro de um. É palestra, é gente interessante circulando, são conversas, experiências, e mais do que isso: é viver por uma semana numa cidade em que cocô de cavalo se espalha pelas calçadas de modernos prédios espelhados. Patinetes elétricos, música country raiz, exposições de VR, tacos e Teslas habitam a mesma cena. Como se nada.
Talvez por esse tipo de contradição intrigante e pouco comum, Austin seja tão boa em manter os nossos olhos abertos e a nossa mente sedenta por reflexão.
Nesse quesito, pra mim, especialmente este ano, as palestras têm um grande protagonismo no evento. Parece óbvio, mas há quem diga que é só acompanhar as gravações que ficam disponíveis online e o que vale mesmo no evento é o networking – do que respeitosamente discordo. Muito mais do que um compilado de tendências passíveis de download, o que torna o evento especial pra mim é a possibilidade de construir uma versão pessoal, lúcida e inspirada da história sendo escrita diante dos nossos olhos.
O SXSW nos dá a chance de refletirmos e nos situarmos um pouco melhor nos tempos muito malucos, mutantes e acelerados em que vivemos. Mas isso não significa que cada palestra seja uma janela para algo totalmente novo e revolucionário. É mais como se cada uma delas trouxesse um fragmento, uma pincelada de um quadro maior e mais nítido do nosso Zeitgeist.
Em pleno 2024, não dá para falar do espírito do nosso tempo sem falar em inteligência artificial – e o SXSW foi um reflexo disso. Esse tema monstruosamente interessante está longe de ser uma conversa trendy sobre tecnologia, pelo contrário: parece ser uma macrotendência de impactos sem fim, como Amy Webb e sua equipe diferenciaram tão bem na masterclass de Strategic Foresight que estreou este ano.
Nessa série de quatro encontros, o Future Today Institute compartilhou sua metodologia e frameworks de aplicação prática que permitem estabelecer alguma previsibilidade sobre o futuro e dessa forma preparar-se para o que vem por aí. As aulas estabeleceram uma crítica aos reports de tendência feitos apenas para serem engavetados, e propuseram uma abordagem que busca converter achados interessantes, tão comuns em processos de pesquisa, em ações práticas de preparação das instituições para o futuro – esse que, potencializado pelos impactos de IA, coloca em xeque a viabilidade de negócios desavisados.
Mas a busca por ferramentas para adoção imediata é uma parte muito pequena do assunto IA. Em um dos momentos mais icônicos deste ano, Josh Constine, ex-editor-chefe do TechCrunch, em entrevista com Peter Deng, executivo do ChatGPT, colocou brilhantemente as grandes e importantes perguntas que estão na mesa: na era da IA, o que significa ser humano? Nós deixaremos de ser os donos das respostas e os criadores para, em vez disso, sermos ótimos questionadores e curadores? Como é o mundo pós-IA? Como as empresas podem se preparar? Quais são os valores que você gostaria de ver aplicados à IA? Existe um caminho do meio em que possamos acelerar o desenvolvimento de IA e ainda nos resguardarmos de seus impactos potencialmente negativos? As empresas que lucram com o desenvolvimento de ferramentas de IA generativa deveriam fornecer contrapartidas para a sociedade na forma de letramento sobre o assunto? Como você se sentiria se a sua arte fosse usada para treinar bots de IA? Os artistas deveriam ser remunerados por isso?
Assim como a maioria das conversas com o ChatGPT, as perguntas ajudaram mais do que as respostas de Deng, que no geral começaram com a carimbada frase “essa é uma ótima pergunta” – também conhecida como “nunca pensamos sobre isso” ou “não posso comentar sobre esse assunto”. Já as declarações que, sim, puderam ser colocadas continham ideias vagas, como uma proposta de “tornar humanos ainda mais humanos” e a fantasia de aumento infinito da potência e da produtividade.
Já vimos esse filme.
Se, por um lado, a conversa com quem desenvolve a IA mais influente da atualidade não dá pistas de que existe qualquer preocupação ética convincentemente comprometida com o mundo que queremos criar em detrimento daquele que podemos do alto da nossa arrogância, outras vozes ofereceram perspectivas mais inspiradoras nesse sentido.
Quem entrasse na palestra dos Daniels, diretores do filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, poderia achar que teria uma bela aula sobre como contar histórias em tempos de atenção tão escassa. Mas os dois diretores surpreenderam trazendo um ponto excelente: sobre como buscar a autorrealização (Ikigai) por meio das histórias que contamos é um antídoto contra o risco de nos tornarmos descartáveis.
“Se alguém disser que ‘usar IA não traz efeitos colaterais, é uma coisa ótima, entre nesse barco’, eu quero dizer que isso é um besteira absurda. Isso não é verdade. E nós deveríamos estar discutindo de maneira profunda e muito cuidadosa como deveríamos implementar isso em nossas vidas.”
Daniel Scheinert
Outra palestrante que agregou pontos importantes sobre como essa implementação vem ocorrendo foi a cientista, poeta e ativista dra. Joy Buolamwini, fundadora da The Algorithmic Justice League. Em sua palestra, foram apresentados números alarmantes sobre a reprodução de vieses dominantes pelas inteligências artificiais que já são comercializadas pelas principais empresas de tecnologia hoje – inclusive as implementadas nos sistemas de reconhecimento facial da polícia. São sistemas com margem de erro abaixo de 10% para rostos masculinos brancos, mas que chegam a quase 40% para rostos femininos pretos ou pardos.
O que chama atenção tanto no caso dos Daniels quanto no da dra. Buolamwini é que, mesmo diante de um tema com a dimensão de impacto da IA, a história se repete: o Vale do Silício cria tecnologias com um potencial avassalador apenas com a missão de lucrar e colocar o nome de grandes criadores na história. E o trabalho de pensar como a sociedade se vira com isso fica restrito aos artistas, acadêmicos e ativistas.
Até quando?
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