Morena Mariah: a afrofuturista do aqui e agora

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Morena Mariah: a afrofuturista do aqui e agora

Uma das porta-vozes do tema no Brasil, a pesquisadora inventa um lugar onde o fazer e o falar são os motores de um mundo bem melhor


20 de junho de 2022 - 8h51

Por Carol Scorce

 

Morena: criar, olhar para frente e imaginar um lugar, um futuro, parte, em boa medida, da ausência (Crédito: Divulgação)

Junho de 2019. Algumas centenas de pessoas muito silenciosas, sentadinhas em fileiras, observavam atentas uma mulher jovem, negra, com tranças no cabelo, articulada e desinibida, usando pausas precisas entre uma frase e outra para perguntar coisas desconcertantes: Quem aqui consegue imaginar pessoas negras, como eu, vivendo tranquilamente daqui a 100 anos? Quem seriam vocês e quem seria eu se estivéssemos no tempo da escravidão?

Essa moça é Morena Mariah e o tempo exato de sua respiração, cuja força traz todos à sua volta a um imediato estado de presença, tem algo entre 500 e mil anos. É passado, presente e futuro. É um sopro carregado da cultura africana e afro-brasileira, e está passando de pulmão em pulmão até chegar no lugar, ou no tempo, onde uma pessoa negra, como ela, talvez como você, vive tranquilamente.

Mas imaginar como se, hoje, um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de um homicídio que um homem branco? Se a mulher negra recebe os menores salários de toda a população, justamente elas, que cuidam de crianças e idosos de toda cor. E talvez por isso. A resposta que Morena nos dá não é difícil de entender. Ela diz que tem como, sim, mas para isso é preciso conhecer o passado e criar um presente imaginando que é na prática, agora, onde mora um futuro bom.

“Quando falo de afrofuturismo, o futuro é a última coisa e a que ocupa a menor parte. Meu trabalho é levar para as pessoas um conhecimento que não é dado em lugar algum; é falar da cultura africana e afro-brasileira”, conta.

Além de pesquisadora, hoje, Morena trabalha também como assessora parlamentar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no mandado da sua parceira de vida Thaís Ferreira. Imagine, então, como é pensar o futuro da cidade do Rio de Janeiro?

“Construímos o ‘Memorial às vítimas da chacina do Jacarezinho’ – uma homenagem às vítimas da ação mais letal da polícia fluminense que acabou em 28 mortos. A justificativa da polícia para entrar ali e matar é que o tráfico estava aliciando menores. Nós sabemos que as forças de segurança do Estado não estão nem aí para os direitos da criança e do adolescente. Então criamos uma série de indicativos para o Executivo fazer naquela comunidade, incluindo transferência de renda para os órfãos do massacre. Essas famílias perdem renda quando um pai, um parente, morre. Sem dinheiro em casa ela com certeza vai acabar no tráfico. Isso, para mim, é afrofuturismo.”

O tempo, explica Morena, dentro das culturas africanas, não é uma flecha lançada para frente. Se parece mais com um espiral, e nele vamos sempre retornar para um ponto onde um de nossos ancestrais já passaram; seus movimentos no aqui e agora acompanham esse ritmo. Morena faz enquanto fala. Fala enquanto faz. Fala com os educadores sobre História, Antropologia, Arte, enquanto formula um projeto de lei determinando o cumprimento do ensino de culturas africanas e afro-brasileiras nas escolas, já previsto em lei, mas ainda muito pouco aplicado no país.

“Isso faz com que eu percorra esse caminho de forma mais lenta, mas estou tranquila com essa decisão. Sou muito cobrada para escrever um livro sobre afrofuturismo. Já formulei um conceito, estou formulando outro. Mas escrever um livro quando? Sou mãe solo, assessora parlamentar, educadora. Se eu esperar ter tempo para escrever sobre o que eu penso não vou fazer mais nada. E tem muita coisa que precisa ser feita. Eu nem tenho esse privilégio.”

A AUSÊNCIA COMO POSSIBILIDADE DE FUTURO

Essa jovem potente ensina sempre um pouco mais do que se espera. Ela ensina, por exemplo, que criar, olhar para frente e imaginar um lugar, um futuro, parte, em boa medida, da ausência. A mãe de Morena é uma mulher preta, filha de mãe preta e pai branco, artista, e trabalhou muitos anos com televisão. O pai de Morena é um homem preto, vindo de uma família pobre e cheia de altos e baixos. Ela viveu neste mundo duplo, com acesso a coisas que a maioria das crianças negras não têm, como a literatura, música, muito próxima a pessoas conhecidas, com carreiras e trabalho consolidados. Ao mesmo tempo, vivia também em uma favela, e tudo o que significa a vida em uma favela.

“Eu não pertencia à realidade das crianças brancas da escola e do condomínio, mas também não podia ser uma preta favelada. E foi ocupando esse não-lugar que me tornei uma pessoa extremamente observadora. Comecei a imaginar.”

Hoje a afrofuturista acumula um diagnóstico de autismo, que veio a muito custo. Anos e anos passando por profissionais que diagnosticavam toda sorte de doença mental, tomando remédios ineficazes, trilhando caminhos pouco normativos – e por isso também não compreendidos e nem sempre acolhidos.

Quem esteve na plateia do TEDx em junho de 2019 e pôde se prender ao sorriso largo e a fala firme, soando como convite ao abraço, pode não acreditar. Morena tem em sua área de superdotação justamente a comunicação, o que explica, ajuda, mas também complica. O autismo, em suas variadas gradações, reivindica cuidado nas relações, no trato, no toque. Só Morena sabe o custo que a sociabilização lhe causa.

Pulou de trabalho em trabalho, de universidade em universidade, e construiu, com isso, uma espécie de Escola Morena Mariah: a junção das suas formações institucionais, aquilo que chamamos de “escola da vida” somado a sua extrema curiosidade e capacidade de fazer acontecer.

AFROFUTURISMO COMO POSSIBILIDADE DE FUTURO

Foi desenvolvendo o trabalho de educação em culturas africanas e mídia na favela do Alemão que Morena e o afrofuturismo se encontraram. “Nós exibimos Panteras Negras para a molecada. No meio do filme eu vi os meninos apontando o dedo um para outro dizendo ‘Olha lá, parece a sua prima, o seu irmão, aquele cara é igual você’. Eu entendi de que forma eu poderia ganhar aderência ao tema. Tinha um fio condutor, um canal. E como eu já estava nos estudos de mídia e comunicação há um tempo entendi que o afrofuturismo, a ficção científica, era um canal para falar das coisas que eu queria falar com aquelas pessoas”, conta.

Hoje ela fala não só com aquelas, mas com todas que se interessam pelo tema. Fala em escolas, fala nos cursos que prepara e ministra de forma online, fala em seminários. Fala sobre afrofuturismo não porque acredita que o conceito abarca e explica tudo, mas porque sabe que precisamos conhecer a história das pessoas negras, como ela, e a história das comunidades negras, como a nossa, para que se conhecendo, o futuro que desejamos sonhe mais como um sonho, cheio de fragmentos fixados no presente.

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