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Opinião

Qual é a sua causa?

Sobre a autonomia de mulheres, síndrome de impostora e ter um propósito


6 de setembro de 2022 - 14h59

(Crédito: MJgraphics/Shutterstock)

Até bem pouco tempo atrás, não se via muita gente expondo informações mais íntimas ou parecendo vulnerável na internet. Demonstrar qualquer tipo de sensibilidade podia queimar seu filme e falar de assuntos pessoais era um grande tabu (principalmente quando a ideia era mostrar uma imagem séria, profissional e aparentar ser “inquebrável”).

Ainda bem que isso está mudando aos poucos. Hoje, não tem problema colocar uma bandeirinha de arco-íris ao lado do seu nome de perfil, usar filtros ou hashtags em apoio a causas sociais e aparentar ser você mesma ao invés de um simples avatar. Tá tudo bem falar de coisas pessoais. E é isso que eu vou fazer neste texto.

Há dois meses, eu perdi meu pai.

O que eu não sabia é que a morte dele teria um impacto tão grande na vida da minha mãe e me colocaria em um processo intenso de reflexão sobre a minha relação com a minha mãe, com meu pai, e até mesmo sobre a formulação da minha própria família e os efeitos disso.

Meus pais foram casados por muitos anos, a vida toda. E minha mãe seguiu o que até então era protocolar na geração dela. Largou a faculdade para ter filhos, e, desde então, ficou em casa. E eu cresci vendo minha mãe ser completamente dependente do meu pai. Mesmo sendo uma pessoa instruída, ela não se sentia segura para fazer nada sozinha. Tudo era assunto para “o homem da casa” resolver. Ela mesma dizia: eu sou mulher, é teu pai que tem que resolver isso, sem se dar conta do absurdo dessa frase.

Depois que o meu pai faleceu, não tinha mais ele para resolver isso ou aquilo. 

E, quando meu pai faleceu, passei uns 15 dias na casa que antes era dos meus pais, e que agora passava a ser “a casa da minha mãe”. Nesses dias, eu presenciei minha mãe sofrer com a ausência do meu pai, mas também sofrer com medo do que ela faria a seguir. “Como vou me virar?” Como vou “resolver as coisas?” “Eu não sei mexer com dinheiro, era teu pai que cuidava disso.” 

Em seguida, vieram os dias depois que eu perdi meu pai. E, depois, vieram os dias em que eu vi nascer uma nova versão da minha mãe.

Minha mãe se viu obrigada a se virar e fazer coisas que nem ela sabia que conseguia. Nesses dois meses, eu estou vendo ela ter que reaprender tudo, até as coisas mais banais, tipo ir ao banco pagar uma conta. Ou estudar sobre ações e dinheiro. Talvez isso tenha a ver com essa crença que muitas mulheres têm de que não sabem lidar com dinheiro, que as finanças são um assunto exclusivo dos homens.

E ela não foi a única. Com a minha avó, aconteceu a mesma coisa. Ela nunca trabalhou, nunca tomou nenhuma decisão realmente importante. Sempre foi dona de casa, sempre viveu em função do meu avô, dos filhos e dos netos.

Tudo bem que ela era de uma outra geração, eram outros tempos. Mas, de alguma forma, parece que esse “destino” das mulheres não mudou tanto ao longo das décadas.

E, por mais tristemente irônico que pareça, acho que esses foram os dias que mais me transformaram nos últimos anos da minha vida. Ali, unidas por uma ausência, eu e minha mãe nos reconectamos, e essa reconexão me escancarou um padrão que se repete por gerações na minha família.

A verdade é que eu fui criada numa família em que todas as mulheres estiveram em papéis subalternos. Bem ou mal, eu sou a primeira mulher da minha família a ter uma carreira, a focar mais na vida profissional. A escolher minha própria trajetória.

Porém, apesar de ter conquistado tantas coisas, eu inconscientemente ainda tenho uma ideia de que as mulheres são “menores” do que os homens. Afinal, essa sempre foi uma verdade disseminada na minha família.

E acho que essa reflexão tem muito a ver com a tal da síndrome da impostora, tão debatida nos últimos tempos. Eu não sei você, mas no meu círculo profissional, tem muita mulher incrível que vive se cobrando, questionando a própria capacidade, lidando com mil inseguranças.

Outro dia mesmo eu estava conversando com uma profissional ultra inteligente e brilhante, que admiro muito, e ela confessou que se vê vivendo a síndrome da impostora. E ela, assim como tantas outras mulheres incríveis que conheço, não deveria ser levada a duvidar de si mesma.

Por outro lado, isso é algo que não costumo notar nos meus colegas homens. Em geral, percebo que eles são mais confiantes e se mostram muito seguros do que estão falando, mesmo quando suas ideias não são tão boas assim.

Para mim, isso é resultado de gerações e mais gerações que cresceram ouvindo que as mulheres são inferiores aos homens, que certos assuntos não cabem a nós. Nós quase nunca somos incentivadas a assumir riscos e explorar todo o nosso potencial.

Veja: eu não estou dizendo que tem algo errado com mulheres que decidem ser donas de casa, mães em tempo integral, que se dediquem inteiramente aos cuidados com a família. Não acho que tenha.

Mas acho que essa tem que ser uma escolha entre tantas outras alternativas possíveis, e não a única opção para todas as mulheres. E, mais do que isso, elas têm que ter autonomia para fazer coisas básicas e cuidar delas mesmas sem depender de ninguém.

No meio dessa espiral de reflexões e no processo de tentar entender a ausência do meu pai também dentro de mim, cruzei com o discurso feito pela Glenn Close ao vencer o Globo de Ouro por seu papel em The Wife, em 2019. Um belíssimo e super forte discurso sobre um diálogo que ela teve com sua mãe. 

Foi pensando nisso tudo que eu me dei conta de que, sim, eu tenho uma causa. E quero lutar por ela.

Como falei, sou a primeira de várias gerações de mulheres na minha família a realmente escolher o que fazer na vida e a construir uma carreira.

E, se eu puder servir de exemplo para alguma coisa, gostaria de inspirar meninas e mulheres a trilharem seus próprios caminhos. Gostaria de poder encorajar outras a serem protagonistas de suas próprias histórias, a brigar pelos papéis principais ao invés de se contentarem com os de coadjuvantes.

Porque acredito que, assim como a minha mãe pode, sim, fazer um monte de coisas que “meu pai resolvia”, a profissional brilhante que eu conheço e sofre de síndrome de impostora tem um futuro igualmente brilhante pela frente, e todas as outras mulheres geniais que trabalham comigo não têm motivos e não devem se sentir menores do que ninguém.

No fim das contas, você não precisa ser a personagem que fica à espera de um herói para te salvar. Você pode ser a própria super-heroína, se quiser.

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