O Zelador da Coerência e suas fórmulas gastas
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Rodrigo Leao
19 de abril de 2014 - 8h20
*Por Rodrigo Leão
Logo antes do Carnaval, um leitor me escreveu dizendo que estava ansioso por uma coluna minha “sobre o Carnaval e como a população brasileira esquece de tudo quando o assunto é festa.” Achei o pedido dele engraçado, afinal ele já tinha um assunto (o Carnaval), uma abordagem pessoal (sua teoria de que a população brasileira só quer festa) e até um estilo de escrita (o meu) que imaginava consoante com esse tipo de opinião. Aí, quem ficou ansioso fui eu.
“Ele está achando que eu sou mais um Zelador da Coerência”, pensei exasperado. O Zelador da Coerência é uma figura mitológica, primeiramente identificada pelo redator Kleber Fonseca, em 2007. É o guardião desarmado da Verdade absoluta, da Certeza final e da Razão acima da felicidade, cobrando a coerência alheia sem ter o mínimo desejo de interferir nos fatos nem praticar o que prega.
O Zelador da Coerência atira contra sujeitos genéricos. São suas vítimas “o brasileiro”, “as elites”, “a esquerda caviar”, “os baderneiros”, “a grande mídia”, “os petistas” e “os tucanos”, “as mulheres”, “os homens”, etc. Para ele, a culpa de tudo é sempre de um grupo indefinido de pessoas. Pode ser de esquerda, direita ou centro, desde que totalmente incapaz de enxergar as outras duas posições. Seu objetivo é se perceber vivo por meio da sua capacidade de reclamar. Regozija ao bloquear na sua página do Facebook as opiniões diversas da própria.
Ele está presente nas salas de reunião, demonstrando suas habilidades paranormais, com frases como “Eu adoro essa ideia, mas o consumidor vai pensar xisipsilonzê.” Ou “A dona de casa média vai achar essa piada muito complicada.” E quem sabe até arriscar um “Os millenials vão curtir, mas não vão compartilhar.”
Presumivelmente, mais de 75% do material circulando nas redes sociais por escrito (Facebook e Twitter) seja pura zeladoria da coerência, gerando uma importante competição com os vídeos de gatos fazendo coisas fofas.
Mais preocupante que isso é o jornalismo atual, que vem substituindo práticas tradicionais, como a apuração e a checagem dos fatos, pela zeladoria da coerência. No momento em que escrevia esta coluna, no dia 6/3/2014, lá pras seis da tarde, abri o site da revista Veja aleatoriamente para tomar o principal título da página como exemplo. Olha o que veio: “Black Blocs querem incendiar a greve dos garis no Rio.”
É claro que, munido da proteção que só a correta interpretação de texto pode oferecer, o leitor treinado sabe bem o que fazer nessa hora: procurar algo de útil para ler em outro lugar. Mas o que entenderão os mais insistentes? Que jornalistas paranormais (novamente) inferiram o desejo coletivo de um grupo indefinido de jovens ligados por roupas pretas e atitudes agressivas de incendiar metaforicamente, mas em sentido negativo a greve dos garis no Rio. Ah, tá.
Isso não é jornalismo. É propaganda. Uma propaganda que diz: você que está assustado com este mundo paradoxal e, por isso, baseia sua opinião em supersimplificações grosseiras pode ter a ilusão momentânea de que está com a razão. Nós podemos lhe oferecer um mundo onde tudo é Fla x Flu, PT contra PSDB, Black Bloc contra a Polícia, e assim por diante. É a mesma fórmula de jornalismo de entretenimento que levou Rupert Murdoch a se tornar um dos homens mais ricos e poderosos do mundo copiada com quase duas décadas de atraso. Aliás, se tem uma coisa que um Zelador da Coerência gosta é de uma fórmula gasta.
Meu amigo leitor talvez acredite que esta coluna zela pela coerência na publicidade. Muito pelo contrário. Escrevo para dar um pouquinho de espaço para a loucura, a insensatez, a incoerência e a ingenuidade. Pra ver se meus leitores também começam a escrever mais sobre o que acreditam, e ao examinar suas certezas, tenham dúvidas. E que as dúvidas ajudem a abrir seus olhos e ouvidos para o que é outro, o que é novo, diferente e criativo. Como disse o Bandido da Luz Vermelha no filme do Rogério Sganzerla: “Fracassei, eu sei disso. Eu tinha que avacalhar. Um cara assim só tinha que avacalhar pra ver o que saía disso tudo. Era o que eu podia fazer.”
* Rodrigo Leão é sócio-diretor de criação da Casa Darwin.
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Rodrigo Leao
19 de abril de 2014 - 8h20
*Por Rodrigo Leão
Logo antes do Carnaval, um leitor me escreveu dizendo que estava ansioso por uma coluna minha “sobre o Carnaval e como a população brasileira esquece de tudo quando o assunto é festa.” Achei o pedido dele engraçado, afinal ele já tinha um assunto (o Carnaval), uma abordagem pessoal (sua teoria de que a população brasileira só quer festa) e até um estilo de escrita (o meu) que imaginava consoante com esse tipo de opinião. Aí, quem ficou ansioso fui eu.
“Ele está achando que eu sou mais um Zelador da Coerência”, pensei exasperado. O Zelador da Coerência é uma figura mitológica, primeiramente identificada pelo redator Kleber Fonseca, em 2007. É o guardião desarmado da Verdade absoluta, da Certeza final e da Razão acima da felicidade, cobrando a coerência alheia sem ter o mínimo desejo de interferir nos fatos nem praticar o que prega.
O Zelador da Coerência atira contra sujeitos genéricos. São suas vítimas “o brasileiro”, “as elites”, “a esquerda caviar”, “os baderneiros”, “a grande mídia”, “os petistas” e “os tucanos”, “as mulheres”, “os homens”, etc. Para ele, a culpa de tudo é sempre de um grupo indefinido de pessoas. Pode ser de esquerda, direita ou centro, desde que totalmente incapaz de enxergar as outras duas posições. Seu objetivo é se perceber vivo por meio da sua capacidade de reclamar. Regozija ao bloquear na sua página do Facebook as opiniões diversas da própria.
Ele está presente nas salas de reunião, demonstrando suas habilidades paranormais, com frases como “Eu adoro essa ideia, mas o consumidor vai pensar xisipsilonzê.” Ou “A dona de casa média vai achar essa piada muito complicada.” E quem sabe até arriscar um “Os millenials vão curtir, mas não vão compartilhar.”
Presumivelmente, mais de 75% do material circulando nas redes sociais por escrito (Facebook e Twitter) seja pura zeladoria da coerência, gerando uma importante competição com os vídeos de gatos fazendo coisas fofas.
Mais preocupante que isso é o jornalismo atual, que vem substituindo práticas tradicionais, como a apuração e a checagem dos fatos, pela zeladoria da coerência. No momento em que escrevia esta coluna, no dia 6/3/2014, lá pras seis da tarde, abri o site da revista Veja aleatoriamente para tomar o principal título da página como exemplo. Olha o que veio: “Black Blocs querem incendiar a greve dos garis no Rio.”
É claro que, munido da proteção que só a correta interpretação de texto pode oferecer, o leitor treinado sabe bem o que fazer nessa hora: procurar algo de útil para ler em outro lugar. Mas o que entenderão os mais insistentes? Que jornalistas paranormais (novamente) inferiram o desejo coletivo de um grupo indefinido de jovens ligados por roupas pretas e atitudes agressivas de incendiar metaforicamente, mas em sentido negativo a greve dos garis no Rio. Ah, tá.
Isso não é jornalismo. É propaganda. Uma propaganda que diz: você que está assustado com este mundo paradoxal e, por isso, baseia sua opinião em supersimplificações grosseiras pode ter a ilusão momentânea de que está com a razão. Nós podemos lhe oferecer um mundo onde tudo é Fla x Flu, PT contra PSDB, Black Bloc contra a Polícia, e assim por diante. É a mesma fórmula de jornalismo de entretenimento que levou Rupert Murdoch a se tornar um dos homens mais ricos e poderosos do mundo copiada com quase duas décadas de atraso. Aliás, se tem uma coisa que um Zelador da Coerência gosta é de uma fórmula gasta.
Meu amigo leitor talvez acredite que esta coluna zela pela coerência na publicidade. Muito pelo contrário. Escrevo para dar um pouquinho de espaço para a loucura, a insensatez, a incoerência e a ingenuidade. Pra ver se meus leitores também começam a escrever mais sobre o que acreditam, e ao examinar suas certezas, tenham dúvidas. E que as dúvidas ajudem a abrir seus olhos e ouvidos para o que é outro, o que é novo, diferente e criativo. Como disse o Bandido da Luz Vermelha no filme do Rogério Sganzerla: “Fracassei, eu sei disso. Eu tinha que avacalhar. Um cara assim só tinha que avacalhar pra ver o que saía disso tudo. Era o que eu podia fazer.”
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Logo antes do Carnaval, um leitor me escreveu dizendo que estava ansioso por uma coluna minha “sobre o Carnaval e como a população brasileira esquece de tudo quando o assunto é festa.” Achei o pedido dele engraçado, afinal ele já tinha um assunto (o Carnaval), uma abordagem pessoal (sua teoria de que a população brasileira só quer festa) e até um estilo de escrita (o meu) que imaginava consoante com esse tipo de opinião. Aí, quem ficou ansioso fui eu.
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É claro que, munido da proteção que só a correta interpretação de texto pode oferecer, o leitor treinado sabe bem o que fazer nessa hora: procurar algo de útil para ler em outro lugar. Mas o que entenderão os mais insistentes? Que jornalistas paranormais (novamente) inferiram o desejo coletivo de um grupo indefinido de jovens ligados por roupas pretas e atitudes agressivas de incendiar metaforicamente, mas em sentido negativo a greve dos garis no Rio. Ah, tá.
Isso não é jornalismo. É propaganda. Uma propaganda que diz: você que está assustado com este mundo paradoxal e, por isso, baseia sua opinião em supersimplificações grosseiras pode ter a ilusão momentânea de que está com a razão. Nós podemos lhe oferecer um mundo onde tudo é Fla x Flu, PT contra PSDB, Black Bloc contra a Polícia, e assim por diante. É a mesma fórmula de jornalismo de entretenimento que levou Rupert Murdoch a se tornar um dos homens mais ricos e poderosos do mundo copiada com quase duas décadas de atraso. Aliás, se tem uma coisa que um Zelador da Coerência gosta é de uma fórmula gasta.
Meu amigo leitor talvez acredite que esta coluna zela pela coerência na publicidade. Muito pelo contrário. Escrevo para dar um pouquinho de espaço para a loucura, a insensatez, a incoerência e a ingenuidade. Pra ver se meus leitores também começam a escrever mais sobre o que acreditam, e ao examinar suas certezas, tenham dúvidas. E que as dúvidas ajudem a abrir seus olhos e ouvidos para o que é outro, o que é novo, diferente e criativo. Como disse o Bandido da Luz Vermelha no filme do Rogério Sganzerla: “Fracassei, eu sei disso. Eu tinha que avacalhar. Um cara assim só tinha que avacalhar pra ver o que saía disso tudo. Era o que eu podia fazer.”
* Rodrigo Leão é sócio-diretor de criação da Casa Darwin.
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