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Opinião

As bets e as mentirinhas que contamos a nós mesmos

É preciso visão mais responsável e aprofundada para entender o impacto das apostas online sobre a população mais vulnerável


30 de setembro de 2024 - 6h00

Como uma boa criança dos anos 1990, cresci cantando “não me diga mentirinhas, dói demais”, enquanto assistia à Chiquititas e ouvia esse clássico da música brasileira cantado na voz da personagem Vivi. Quem viveu, sabe.

Hoje, 2024, mentirinhas continuam doendo. Mas, desta vez, alimentando conflitos globais, corridas eleitorais repulsivas e avanços inadmissíveis, como o das bets. Mesmo que nem sempre estejam visíveis.

Seria simplista achar que as mentiras estão avançando somente por causa das redes sociais ou uso de inteligência artificial (IA). A verdade é que elas sempre estiveram aqui e as tecnologias apenas dão escala a um comportamento nativo e mais humano do que gostaríamos de admitir.

Quase 90% da população brasileira diz já ter acreditado em conteúdos falsos. E seis em cada dez brasileiros contam uma mentira de vez em quando, segundo dados da Locomotiva em pesquisa encomendada pela Agência Brasil. Dados que, provavelmente, incluem algumas mentiras dos respondentes – porque seis em cada dez me parece muito baixo.

O problema é que mentiras individuais e aparentemente inofensivas, quando se tornam ações coletivas, geram impactos muito maiores. O escritor Yuval Noah Hahari aprofunda muito bem esse tema em seu novo livro, Nexus, quando diz que “embora cada pessoa esteja normalmente interessada em conhecer a verdade sobre si e sobre o mundo, as redes amplas unem os membros que pensam igual e criam uma ordem baseando-se em ficções e fantasias. Foi assim que chegamos, por exemplo, ao nazismo, uma rede excepcionalmente poderosa unida por ideias excepcionalmente ilusórias”.

Precisamos reconhecer: mentiras são um recurso com alto potencial atrativo. E é isso que tem me preocupado ultimamente, enquanto acompanho avanços tecnológicos e a superficialidade de discussões sociais.

Investigando os porquês, esbarrei com o episódio “Por trás da mentira”, do podcast Vibes em Análise. Nele, os apresentadores André Alves e Lucas Liedke citam o caso Kate Middleton, que em 2024 virou assunto no mundo inteiro por ter desaparecido dos holofotes da imprensa. Para eles, toda a teoria da conspiração envolvida no sumiço dela tornou o assunto muito mais interessante e excitante do que a própria verdade, que, de certa forma, chegou para acabar com a brincadeira de investigação e suposições fantasiosas.

É como se a verdade fosse fria, limitada e monótona, enquanto a mentira fosse infinita, ousada e cativante. E como se a mentira se apresentasse como um caminho de escapismo, já que a verdade é o que dói mais e em uma sociedade injusta em tantos níveis como a nossa.

No mesmo podcast, o historiador, professor e escritor Leandro Karnal, reforça esse ponto: “Nós mentimos pelo mesmo princípio que a água flui por onde encontra menor resistência. Nós queremos preservar a nós, nossa integridade, nossa felicidade, nosso corpo e nosso bem-estar. E a verdade é um valor menor do que minha saúde, honra, família e assim por diante. […] A realidade que eu sou acaba sendo tão terrível que é preferível mentir”.

E é aí que eu queria chegar. Precisamos nos atentar mais para as mentiras que se vestem de escapismo da realidade. Falemos do caso das bets.

Recentemente, um problema que já imaginávamos ser grave, se mostrou ainda pior: dados do Banco Central mostraram que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em bets em agosto de 2024. O relatório inclui tanto as apostas em eventos esportivos como jogos em cassinos virtuais. E o número real pode ser ainda pior, já que os dados divulgados incluem apenas as apostas via Pix e não outros meios de pagamento como cartões de débito, crédito e transferência eletrônica direta (TED).

Um discurso raso e moralista poderia questionar o Bolsa Família e a real necessidade que essas famílias têm desse dinheiro, já que o estão usando em apostas. Mas uma visão mais responsável e aprofundada chegará à raiz do problema: quando a realidade da educação, do desemprego e da saúde não apresenta possibilidades reais de melhora e quando a confiança em governos e instituições decai a cada ano, o jeito é tentar achar uma saída com as próprias mãos. E é aí que as bets se tornam ainda mais perigosas, porque são aquelas mentirinhas que aceitamos contar para nós mesmos, já que em meio a milhares de chances de perder, há pelo menos uma chance real de ganhar.

Porém, quando mentiras se tornam tão coletivas quanto a das bets, não cabe mais a um indivíduo resolver. Coletivamente, temos o poder de quebrar mentiras como essa, de criar medidas de regulação, projetos de conscientização etc. Mas cabe lembrar que o que está por trás dela é muito maior do que uma tecnologia: é um pedido de ajuda e a verdade de que nosso sistema econômico já não está mais dando conta.

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