ProXXIma
14 de maio de 2020 - 7h40
Por Fabio Sá (*)
Fecha os olhos e imagina a seguinte cena. Ou melhor, não fecha os olhos, continua lendo, mas imagina a seguinte cena:
Final de campeonato. O empate é deles. Fim do 1º tempo e 2×0 para vocês, fora o baile, jogo absolutamente controlado. Finalmente, nove eternos anos depois, chegava a sua vez. E logo contra o principal rival. E no ano do centenário deles! Eles com o melhor jogador do mundo em campo, e ainda coadjuvado por estrelas. Vocês com um time operário, mediano no máximo. Mas aí vem o futebol e te esmurra com uma dose de realidade. 2º tempo e gol deles. “Calma, 2×1 ainda é nosso”. Outro gol deles. 2×2. O empate é deles, lembra? Seu time perde o controle. Um expulso. Dois expulsos. A torcida deles cantando “É campeão” e você volta a odiar tudo aquilo que amou, com a mesma intensidade. 41 do 2º tempo. Bola aberta na direita. Um time guerreiro tentando um último suspiro. O meia esforçado tira forças de onde não há e corta para um lado – “chuta!!” – corta pro outro – “chuta, p…!!!”— e, só então, com uma tranquilidade de quem sabia que aquele roteiro estava escrito há mil anos, desfere o golpe de misericórdia em direção ao nada, ao gol mais inacreditável e mais merecido da história do futebol (pelo menos aos seus olhos, claro).
Eis que tudo vira abraço. Abraço e grito de gol. Abraço e choro. Abraço e mais nada.
Quem vive o futebol com a intensidade que o povo brasileiro vive, sabe do que estou falando. Os personagens podem mudar, o cenário também, mas a sensação de absoluta grandeza, de máxima felicidade, essa não muda. Ela está presente na memória de cada apaixonada e apaixonado por futebol.
E não há nada que represente isso melhor do que o abraço na hora do gol. O abraço de gol é uma entidade espiritual gigantesca. Naquela fração de segundos entre o nervosismo à flor da pele e a explosão catártica, ele emana diretamente da alma, trazendo para o universo tudo o que nós temos de melhor dentro de nós, e deixando de lado toda a nossa parte ruim. No abraço de gol, nós somos só felicidade plena, com tintas de alívio e de absoluta compaixão pelo próximo. É quando abraçamos qualquer um que esteja ao nosso alcance, irradiando uma positividade absurda, olhando no olho daquele desconhecido e se reconhecendo nele. GOOOOOOL!
Se os criadores do filme “Monstros SA” gostassem de futebol, os monstrinhos não trocariam a energia dos sustos pela das risadas, e sim por abraços de gol. Porque não há nada no mundo que transmita tanta energia quanto um abraço de gol. Se for “daquele” gol, então, nem se fala. Se fosse possível medir, eu arrisco dizer que seria suficiente para abastecer São Paulo inteira por um mês. No meu exemplo lá de cima, certeza que abasteceria por cem anos.
Na realidade, a única coisa que ganha de um “abraço de gol” é o abraço da minha filha quando eu volto de viagem. Mas aí também é covardia. Ela é meu GOAT.
Mas, voltando… e o que isso tem a ver com a Quarentena?! Tudo. Absolutamente tudo.
Eu consigo sim viver sem futebol (por mais um tempo). Seria até leviano falar sobre o futebol como item de primeira necessidade, em tempos de tantos óbitos. Mas, sabe o que é sim um item de primeira necessidade nesses tempos tão duros? Ele mesmo, o abraço.
O abraço nos nossos “véios”, aquele abraço longo, de coração apertado pela saudade e pelo medo de perdê-los nessa maluquice toda. O abraço nos nossos amigos e amigas, familiares ou da vida, irradiando todo o amor que a gente sente, mas nem sempre fala pra eles e pra elas.
Em tempos de isolamento social, eu queria dar abraços que talvez nunca nem pensasse em dar. Eu queria abraçar o cara com quem discuti por bobagem no parque uma vez, e saímos cada um para um lado, p… da vida, odiando um ao outro – eu não te odeio, cara, mil desculpas, vem aqui, me dá um abraço. Eu queria dar um abraço em quem já foi mesquinho comigo e com as pessoas que eu amo, e dizer para elas que o tempo é curto demais pra gente se envenenar por posses, por coisas. Eu queria dar um abraço em cada vítima de agressores covardes, mulheres e crianças que nesse momento estão ainda mais frágeis por conta do confinamento. Eu queria dar um abraço e chorar junto com cada um e cada uma que perdeu alguém nessa luta ensandecida, diária e cruel.
Mas não posso. Não podemos. Os abraços – os do futebol e os da vida – ficaram para depois. Para quando o mundo voltar ao “normal”. Que mundo? Que normal?
Temos que nos contentar com os abraços que podemos dar. Eles ainda existem, só que agora vem em tamanhos e formas diferentes. Um agradecimento sincero e generoso a quem não tem o privilégio de poder ficar em casa é um abraço.
Ajudar o pequeno negócio, comprar do profissional autônomo, continuar pagando quem mais precisa da grana, mesmo que para isso você se aperte um pouco, definitivamente são abraços apertados. Cruzar olhares na rua quando for andar com o cachorro, balançar a cabeça em sinal afirmativo, falar um “bom dia” sincero, reconhecer a existência e a importância do outro ser humano, isso sim são abraços. Ensinar o que você sabe a quem precisa, que baita abraço! Dar atenção de verdade aos seus filhos, se interessar genuinamente pelo o que eles estão aprendendo na escola, se dispor a ajudar mesmo na correria da sua agenda abarrotada, abraçá-los física e emocionalmente, caramba, que abraço gostoso! Ligar, escrever, mandar áudio (eu adoro um áudio), dizer que está com saudades, que quer encontrar assim que isso tudo acabar, que o que mais queria agora era só… era só um abraço.
Fica aqui o meu abraço. Virtual, mas verdadeiro. Quem sabe um dia não nos esbarramos numa arquibancada (provavelmente de visitante) e, mesmo sem trocarmos uma única palavra, compartilhamos um “abraço de gol” daqueles que nunca nos esqueceremos? Tomara!
(*) Fabio Sá é Diretor Geral da Minute Media (dona de marcas como 90min e The Players’ Tribune) para o Brasil e América Latina. É também sócio fundador do Nós Por Elas, que promove a defesa pessoal de mulheres, junto com a sua companheira Tata e sua filha Nina.