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Como lideranças LGBTQIAPN+ enfrentam e rompem barreiras

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Como lideranças LGBTQIAPN+ enfrentam e rompem barreiras

Executivos compartilham experiências de solidão e resistência e explicam por que diversidade na liderança vai além da representatividade


27 de junho de 2025 - 9h32

(Crédito: Shutterstock)

Apenas 5% das lideranças de empresas no Brasil são LGBTQIAPN+, segundo pesquisa da Gestão Kairós de 2022. O número baixo não surpreende: mais da metade dos profissionais, 54%, não se sentem seguros para falar abertamente sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero no ambiente de trabalho, de acordo com um estudo da consultoria Mais Diversidade.

O preconceito é um dos principais desafios que os profissionais LGBTI+ enfrentam no mundo corporativo. “No meu caso, até hoje, algumas empresas deixam de me contratar por eu ser uma mulher trans e negra. Já ouvi comentários como: ‘Pensamos em você para um evento, mas achamos que sua figura poderia ser ‘um pouco a mais’ para o nosso público, e por isso preferimos contratar um homem em seu lugar’”, conta Gabriela Augusto, fundadora e CEO da Transcendemos, consultoria de diversidade e inclusão.

Gabriela Augusto, CEO da Transcendemos (Crédito: Divulgação)

Renata Afonso, presidente para a América Latina da ViewMind, uma healthtech focada em saúde cerebral, também já sofreu preconceito. “No ambiente profissional, o mais marcante talvez tenha sido o olhar enviesado, o julgamento sutil, muitas vezes mais nocivo do que o ataque direto. Também enfrentei desconfortos em ambientes sociais por estar acompanhada da minha companheira, momentos em que fica claro o quanto a nossa existência incomoda quem ainda não está pronto para conviver com o diferente”, relata.

Rafael Camilo, vice-presidente sênior de inovação e integração na Edelman, não sofreu nenhum ataque homofóbico diretamente, mas o medo de virar chacota era constante. “No início da minha carreira, me esforçava muito para ser o melhor profissional possível. Queria ser admirado e querido, criando uma espécie de escudo para que minha sexualidade não virasse alvo de piadas ou comentários homofóbicos”, lembra.

Embora o preconceito não se manifeste de forma tão explícita para alguns grupos dentro da comunidade, para outros, a realidade é bem mais dura, como reconhece Renato Camargo, vice-presidente de clientes nas farmácias Pague Menos e Extrafarma.

“Existem muitos desafios quando se trata de um profissional com intersecções e características diferentes das minhas. Sou um homem branco e cis, apesar de ser gay. Na escala de privilégios, acho que só perco mesmo pro homem branco, cis e hétero. Então, quando você olha para pessoas negras, mulheres e pessoas trans dentro desse mesmo grupo, é muito mais difícil”, reflete o executivo.

Renato Camargo, VP de clientes nas farmácias Pague Menos e Extrafarma (Crédito: Divulgação)

“Ouvi muitos relatos de pessoas LGBTI+ que foram assediadas, excluídas e impedidas de avançar profissionalmente. Quando olhamos especificamente para a comunidade trans, os desafios são ainda mais urgentes. Isso faz com que a presença delas em cargos de liderança ainda seja rara e revolucionária”, complementa Rafael.

Barreiras

Esses desafios dificultam o acesso de pessoas da comunidade a cadeiras executivas. “Profissionais LGBTQIAPN+ ainda enfrentam inúmeros obstáculos para chegar a posições de alta liderança, desde preconceitos inconscientes até a falta de representatividade e ambientes que nem sempre são, de fato, inclusivos. Eu mesma já vivi situações em que minha capacidade de liderança foi questionada simplesmente por ser quem sou”, conta Mariana Dias, CEO da Gupy.

“Não são só as barreiras explícitas que dificultam a chegada de pessoas LGBTI+ na alta liderança, mas também as sutilezas do ambiente corporativo: a falta de representatividade, os códigos de comportamento não-ditos, os vieses inconscientes. É difícil ser o que não se vê, e durante muito tempo eu simplesmente não via pessoas como eu ocupando espaços de decisão”, afirma Isabella Muholland, CSO Suba.

Para Isabella, o caminho para se sentir confortável na própria pele foi longo e marcado pelo desejo de se adequar a modelos sociais “dentro da norma”. “O maior desafio, talvez, tenha sido entender que eu não precisava me encaixar em moldes para ser líder, que minha trajetória, minha escuta, minha sensibilidade e meu jeito de estar no mundo são justamente o que me tornam uma boa liderança”, reflete.

Isabella Muholland, CSO Suba (Crédito: Divulgação)

Liderança solitária

O teste do pescoço, muitas vezes, irá mostrar um ambiente que falta representatividade, o que pode tornar a liderança LGBTI+ solitária. “Hoje, como CEO, LGBTQIAPN+ e recém-mãe, muitas vezes falta alguém com quem eu possa me espelhar ou trocar. Ainda são raríssimas as lideranças com esse recorte no mercado”, aponta Mariana Dias.

Mesmo em ambientes que promovem debates e ações de diversidade e inclusão, ainda é comum a reprodução de preconceitos, o que faz com que algumas pessoas não se sintam verdadeiramente acolhidas e contempladas.

“Sou uma profissional lésbica, negra e andrógina. Isso faz com que eu vivencie desafios por ser uma mulher negra e lésbica que não performa a feminilidade. Como consequência, nem sempre me sinto bem-vinda em fóruns de discussão de gênero, por exemplo, por não performar a feminilidade discutida ali. Não uso as mesmas roupas, não vivencio exatamente as mesmas pautas e nem sempre encontro espaço para discutir as minhas dores”, destaca Gabriela Rodrigues, chief impact officer da Droga5 São Paulo.

Potências não-normativas

Embora existam muitos desafios, lideranças LGBTQIAPN+ também carregam uma série de vantagens que agregam valor às empresas. A própria trajetória de Isabella é prova disso, ao mostrar que a autenticidade pode ser um diferencial relevante. “A potência está justamente aí, em saber o que é estar à margem, e por isso construir centralidades mais inclusivas. Em entender que não existe uma única forma de ser competente, de se expressar, de construir autoridade. Em desafiar modelos prontos e trazer novas referências, novos repertórios, novas formas de liderar”, diz a CSO da Suba.

“Ser uma liderança LGBTQIA+ significa carregar uma bagagem de resiliência, empatia e adaptação que não se aprende em nenhum MBA”, adiciona Renata  Afonso. “Crescemos aprendendo a ler ambientes e entender códigos sociais para nos protegermos, e isso acaba sendo uma poderosa ferramenta de liderança. Aprendemos a criar pontes onde há muros, a existir com força em espaços que não foram desenhados para nós. Essa vivência nos torna mais preparados para lidar com times diversos, com complexidade, com vulnerabilidade.”

Renata Afonso, presidente da ViewMind para a América Latina (Crédito: Divulgação)

Para muitos líderes, a empatia, hoje valorizada no ambiente profissional, é uma das características que essas pessoas carregam. “Ser uma liderança LGBTI+ é carregar, naturalmente, um olhar ampliado sobre o mundo. A gente aprende a navegar por espaços que nem sempre foram feitos pra gente. Isso traz uma escuta mais afiada, uma empatia mais profunda e uma capacidade única de ler contextos, pessoas e sutilezas, habilidades essenciais para liderar times diversos e gerar conexões reais”, destaca Isabella.

Responsabilidade de transformação

Fazer parte dessa comunidade também cria um senso de responsabilidade de atuar como aliados para outros grupos diversos. “Como mãe LGBTQIAPN+, tenho a oportunidade de representar e apoiar pessoas que enfrentam desafios semelhantes. Isso me motiva a contribuir para ambientes mais acolhedores, onde todos se sentem respeitados e motivados a dar o seu melhor. A diversidade de vivências não só enriquece a cultura organizacional, como também impulsiona resultados positivos e inovadores para a Gupy”, afirma a CEO da empresa.

Além do papel de aliados, essas lideranças têm o potencial de promover transformações profundas na sociedade. “Nós temos um termômetro social aguçado, treinado pela nossa própria dor, que é capaz de aprofundar discussões com o mercado, brigar por não negociáveis e engajar as marcas profundamente em mudanças. Em resumo, nossa identidade é parte da nossa caixa de ferramentas de inovação e disrupção”, complementa Gabriela Rodrigues.

Gabriela Rodrigues, Chief Impact Officer da Droga5 São Paulo (Crédito: Jordan Vilas)

Para essas lideranças, a cadeira executiva traz a possibilidade de mudar a realidade. Elas nxergam a posição como uma oportunidade para alavancar outros talentos de grupos subrepresentados, por exemplo. “Sinto que é minha responsabilidade estender a mão para quem vem atrás. Ao estar nesse palco, chega um momento em que você precisa sair de cena e dar espaço para outras pessoas. É aquele famoso ‘uma mão puxa a outra’. Quando uma liderança LGBTI+ chega lá, ela precisa entender que, em algum momento, tem que puxar alguém para esse palco”, pontua Renato.

Dada a grande falta de representatividade, aqueles que conseguem chegar lá também viram exemplos a serem seguidos. “Ser uma liderança LGBTI+ também é ser símbolo. Mostra para outras pessoas que elas não precisam se esconder, que há espaço para existir por inteiro com orgulho. E quando a gente lidera a partir da nossa verdade, com coragem, isso reverbera. No ambiente, nos times, nas entregas. Porque representatividade não é só importante, é estratégica e transformadora”, afirma Isabella.

Papel das empresas

“Os casos em que vi grupos subrepresentados conseguirem crescer e prosperar dentro das organizações foram resultado de esforços corporativos consistentes e bem planejados em prol da inclusão”, destaca Rafael Camilo.

Para o executivo, as empresas devem adotar uma política de tolerância zero à discriminação, incluindo canais eficientes de denúncias. “Um profissional LGBTQ+ dificilmente buscará crescimento em um ambiente onde sofre microagressões constantes ou sente que sua existência não é bem-vinda”, complementa.

Rafael Camilo, vice-presidente sênior de inovação e integração na Edelman (Crédito: Divulgação)

Para essas lideranças, as empresas devem fazer uma avaliação interna antes de tudo. “É preciso reconhecer que igualdade de oportunidade não é ponto de partida, mas ponto de chegada. Isso significa identificar os gaps, os vieses e os filtros invisíveis que impedem o avanço de talentos LGBTI+, mesmo quando eles têm competência de sobra”, aponta Muholland.

Gabriela Augusto exemplifica algumas ações, como recrutamento com recorte interseccional, programas de mentoria e patrocínio, além de metas claras de representatividade na liderança. Tudo isso faz parte de uma estratégia de inclusão que deve contemplar as especificidades dos grupos diversos.

Renato Camargo ainda ressalta a importância de pensar no desenvolvimento dessas carreiras dentro das empresas, estimulando ações afirmativas como grupos de afinidade, trilhas de carreiras e treinamentos. “É preciso dar visibilidade, estimular o potencial criativo e mostrar o valor de ter grupos diversos atuando juntos, porque as políticas de DEI são essenciais para uma empresa crescer, ser diversa, criativa e gerar resultados”, pontua.

Além de criar planos de carreira, os executivos das empresas precisam estar comprometidos com a pauta. “É fundamental que a alta liderança demonstre comprometimento com a diversidade não apenas no discurso, mas em ações concretas, como a formação de comitês de diversidade e a revisão constante de práticas de recrutamento e retenção de talentos”, aponta Mariana Dias.

Mariana Dias, CEO da Gupy (Crédito: Divulgação)

Representatividade e cultura

Ter referências também é importante não apenas para inspirar e mostrar que é possível, mas para estimular uma cultura mais acolhedora. “Promover referências LGBTQIA+ dentro da empresa, mostrar que existe espaço real para crescer sendo quem se é. Estudos de Harvard, McKinsey e Out Leadership mostram que empresas com lideranças diversas performam melhor, atraem mais talentos e inovam mais rápido. A equação é simples: quando as pessoas podem ser elas mesmas, elas entregam o melhor que têm”, destaca Renata.

“Representatividade não é só sobre estar presente”, continua. “É sobre ter voz, influência, e poder transformar estruturas. É fundamental que as empresas entendam que diversidade não é um projeto paralelo, mas uma estratégia central para inovação e relevância. Ainda há muito a ser feito, principalmente na América Latina. Por isso, precisamos estar nesses espaços não como exceções, mas como parte essencial da mudança”, conclui.

Para Gabriela Augusto, ter lideranças LGBTQIAPN+ é um indicativo de que a empresa está mais preparada para lidar com a complexidade dos tempos atuais. “Um mundo plural, em constante transformação e que exige lideranças com coragem para fazer diferente”, ressalta.

“A diversidade não é apenas uma pauta de responsabilidade social, mas um diferencial estratégico para qualquer organização. Quando líderes LGBTQIAPN+ ocupam espaços de destaque, inspiram mudanças profundas na cultura corporativa e contribuem para um futuro mais justo e inovador”, continua Mariana Dias.

“Para fomentar carreiras de pessoas LGBT+, a parte mais importante é entender que essa causa é maior que um ou outro governo e que há séculos precisamos de emprego, renda e de um espaço seguro que respeite quem somos em todas as nossas esferas, sejam visuais, técnicas ou comportamentais. Um espaço que compreenda que não somos todos iguais e não nos impeça de executar um bom trabalho por conta de quem somos ou com quem nos relacionamos. E que mova o que for necessário nas políticas internas para que a frase acima seja possível e verdadeira”, finaliza Gabriela Rodrigues.

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