Márcia Cavallari: uma vida dedicada às pesquisas eleitorais

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Márcia Cavallari: uma vida dedicada às pesquisas eleitorais

A CEO do Ipec (ex-Ibope Inteligência) explica como são feitas as pesquisas de intenção de voto e reforça que o seu papel não é acertar o resultado


24 de outubro de 2022 - 8h37

Por Lídia Capitani e Regina Augusto

Márcia Cavallari é CEO do Ipec, Inteligência em Pesquisa e Consultoria, que antes era o Ibope (Crédito: Divulgação)

Existe uma Márcia Cavallari que é mãe de dois filhos, avó de quatro netos. Uma mulher feliz que gosta de ler, viajar, entrar em contato com a natureza. Que adora velejar com o marido e contemplar o mar, o silêncio. Essa mesma Márcia, quando entra no escritório, enfrenta uma série de pressões vindas de partidos políticos, candidatos, veículos da imprensa, jornalistas, pessoas influentes, governo federal e de toda a sociedade brasileira. Em período de eleições, ela é a mulher do momento, tanto para o bem, para aqueles que anseiam por acompanhar as pesquisas eleitorais, quanto para o mal, para quem a acusa de manipular e fraudar os dados. 

Márcia Cavallari é CEO do Ipec Inteligência em Pesquisa e Consultoria, empresa criada em fevereiro de 2021 que, até então, se chamava Ibope Inteligência. A marca, que acabou virando sinônimo de pesquisa no Brasil, deixou de ser usada na área de pesquisa de opinião e de mercado quando terminou o acordo de licenciamento com a Kantar, grupo internacional que adquiriu a operação do Ibope em 2014, na época em que pertencia integralmente ao Grupo WPP. O trabalho de mensuração de audiência televisiva e pesquisas de mídia passou a ser de responsabilidade da Kantar Ibope Media, marca que segue em atividade no mercado nacional. 

Márcia amadureceu e cresceu profissionalmente juntamente com a democracia brasileira. As duas começaram sua jornada no início dos anos 1980 e avançaram até os dias atuais, quando se consolidaram em suas fortes instituições. Márcia, à frente da maior empresa de pesquisa do país, criada há 80 anos, e o Brasil, como uma democracia, até então, estável. 

Apesar dos grandes desafios que precisa enfrentar como executiva, líder, mulher e a principal porta-voz feminina das pesquisas eleitorais no país, a CEO do Ipec tem orgulho da profissão que escolheu. Ela é apaixonada pela vida, pelo conhecimento e pelas pessoas. Desse modo, a pesquisa é o seu barco na missão de conhecer, aprender e informar. Num mundo digitalizado, de relações virtuais, regido por algoritmos, redes sociais, mensagens instantâneas, que geram polarização, ódio, mentiras, desinformação e acusações, ela gostaria que as pessoas olhassem com mais humanidade para o outro. Ela mesma, de vez em quando, precisa tirar um momento para si e ficar em silêncio, a fim de abafar todas as vozes e descansar. 

Com total transparência, Márcia Cavallari conta sua trajetória profissional, da aluna de estatística na Universidade de São Paulo (USP) à CEO do Ipec nesta entrevista ao Women To Watch. Ela revela todos os detalhes da sua vida, da empresa a qual dirige, e também responde às questões mais complexas e controversas sobre as pesquisas eleitorais, desde quem as encomenda e como são feitas até as investigações que por vezes necessitam passar para responder às acusações de fraudes e manipulação. 

Como foi o começo da sua vida e seu caminho até chegar aonde está hoje? 

Nasci em São Paulo, na Vila Mariana, e fiz toda a minha formação aqui. Cursei estatística na Universidade de São Paulo e escolhi me especializar em pesquisa. Comecei estagiando no IPT (Instituto de Pesquisa Tecnológica), também na USP. Logo, eu me encantei pela área, porque você pode abordar vários temas e se aprofundar em assuntos diferentes. Também existe uma diversidade de técnicas analíticas e de execução de pesquisas que eu acho muito enriquecedora. Na prática, você aprende um assunto novo todo dia. 

Quando me formei, em 1981, saí do IPT e comecei a trabalhar no Ibope no ano seguinte, na parte de execução e elaboração de amostras para pesquisas de campo. Naquela época, o Ibope ainda era pequeno e as pesquisas não eram em tempo real, como acontece hoje. Comecei dando esse suporte a todas as áreas da empresa, tanto na análise de resultado quanto na elaboração das amostras. Trabalhei uns cinco anos dessa forma, e resolvi fazer mestrado nos Estados Unidos, na Universidade de Connecticut, na área de pesquisa de opinião pública. Quando voltei ao Brasil, em 1991, também retornei ao Ibope, porém não mais na área de estatística, mas na de opinião pública. Nesse momento, o Ibope já estava se estruturando em áreas diferentes: existia a área de pesquisa de mercado, de opinião pública, de mídia e audiências. 

Comecei como gerente e depois assumi a diretoria da área de opinião pública, e fiquei nessa posição até o licenciamento da marca Ibope terminar. Isso se deu porque a parte de mídia foi vendida para um grupo inglês e tínhamos um acordo de uso da marca na outra unidade de negócio, que era de pesquisa ad hoc, até 2021. Quando não pudemos mais usar a marca, nós abrimos o Ipec, em fevereiro do mesmo ano. 

Você praticamente acompanhou todas as eleições do pós-democratização. Como funcionam as encomendas das pesquisas eleitorais? São feitas pelos próprios partidos, pelos veículos de comunicação ou por iniciativa própria? 

Durante esse período do Ibope, foram quase 40 anos em que eu acompanhei de perto todas as eleições, desde o pleito de 1982, que foi para governadores, e a primeira direta durante a redemocratização, até a de agora, em 2022. Só não participei das eleições enquanto estava nos Estados Unidos. Fomos acompanhando cada momento do país, cada situação. 

As pesquisas de opinião pública e eleitorais são feitas para diferentes clientes e com objetivos distintos. Por exemplo: as que são feitas para veículos de comunicação são questionários mais simples, enxutos, cujo objetivo é passar uma informação e dar conhecimento à sociedade de como o brasileiro está pensando. Quando é para divulgação, o foco é esse: mais objetivo, mais informativo. 

É importante esclarecer isso, porque a pesquisa não é um diagnóstico daquele momento e também não é um prognóstico dos resultados do futuro. Entre terminarmos a pesquisa e o eleitor votar, muitas coisas podem acontecer: ele pode mudar de opinião, ter outras informações que considere na hora da decisão final… ele pode ter várias ações. É importante dizer sempre que a pesquisa registra um determinado momento do eleitor. 

As pesquisas também podem ser contratadas pelas campanhas eleitorais e pelos partidos políticos, ou por entidades que estejam interessadas em acompanhar a eleição, como associações de classe, por exemplo. Qualquer um pode ter interesse em acompanhar e, neste caso, o objetivo muda. Se estamos fazendo pesquisa eleitoral para um determinado candidato ou partido, o objetivo é testar ideias, testar a comunicação, ver o que está funcionando ou não e testar o que o eleitor está entendendo ou não. São levantadas informações que vão subsidiar ações táticas e estratégicas da campanha. 

Quando fazemos para uma entidade de classe, muitas vezes eles têm interesse em acompanhar a eleição, ou em ter um papel mais participativo, ou ainda em ter maior exposição no momento da divulgação. Raramente fazemos com recursos próprios ou por iniciativa, apenas quando, por exemplo, acontece um fato muito importante e não está prevista uma divulgação naquele momento. Mas é muito raro. Por exemplo: quando vamos escrever um paper para um congresso, aí sim, podemos fazer uma pesquisa com recurso próprio para gerar conhecimento ou para escrever um livro. Mas é raro, porque sempre temos contratantes que estão interessados em divulgar essas informações. 

Agora, as perguntas que mais me fizeram durante esse período inteiro foram: “como eu não conheço ninguém que foi entrevistado?”, “como eu nunca fui entrevistado?” e “como uma amostra tão pequena pode representar tantos eleitores?”. Esse é um tema mais técnico, porque se trata de uma teoria estatística, que é de difícil compreensão para o leigo. Mas, eu sempre explico que tirar uma amostra e ter uma representação fiel do seu universo de eleitores funciona da mesma forma quando você faz um exame para descobrir o seu tipo sanguíneo: eles retiram algumas gotas para ver o seu tipo de sangue. A amostra é a mesma coisa: você seleciona algumas pessoas da sua população e, a partir dela, estima as variáveis que quiser usar para representar o universo como um todo. 

Sobre a questão “como eu não conheço ninguém que foi entrevistado?”: temos 156 milhões de eleitores e fazemos uma pesquisa com aproximadamente 2 mil entrevistas. A probabilidade de selecionar uma pessoa é 2 mil dividido por 156 milhões, ou seja, é um número muito pequeno. Por isso que as pessoas não conhecem ninguém e muitas vezes nunca foram entrevistadas. São apenas questões técnicas. 

Nesses seus quase 40 anos de trajetória na área, em que acompanhou todos os processos recentes do Brasil, você já viu alguma coisa parecida com o que está acontecendo este ano? Em termos das diferenças entre o resultado das eleições e o que as pesquisas apontavam nos dias anteriores ao primeiro turno? 

Sim, isso sempre acontece, não é uma questão desta eleição, e acontece principalmente no primeiro turno, quando temos muitos candidatos e um processo decisório mais complexo para o eleitor. Porque eles precisam escolher um deputado federal, estadual, senador, governador e presidente. A lógica da decisão de voto é a contrária à sequência em que votamos, porque primeiro se decide o presidente, depois o governador, e em seguida senador e deputados federais e estaduais. Então, isso sempre acontece. É um processo complexo mesmo. 

Entretanto, nesta eleição especificamente, estamos numa disputa tão polarizada que as decisões ficaram para o segundo turno. Por exemplo, às vésperas do primeiro turno, 40% dos eleitores de São Paulo não sabiam em quem votar para governador e 50% não sabiam em quem votar para senador, isso na pergunta espontânea. O que vemos ao longo das campanhas é que há uma convergência entre a pergunta espontânea e a estimulada. A pergunta espontânea é aquela que o entrevistado diz em quem votaria de maneira livre, sem saber os candidatos, e a estimulada é quando mostramos quem são os candidatos. Quando há uma convergência maior, ela mostra uma consolidação do voto. 

Mas a pesquisa não tem esse papel de projetar, ela mostra uma tendência. O que medimos é uma intenção, e não um comportamento eleitoral. A pesquisa eleitoral é mais complexa no sentido de que estamos medindo a opinião das pessoas, que pode mudar. É diferente de uma pesquisa de mercado, onde você tem questões mais factuais, como você tem isso ou aquilo, você compra ou não compra. Não são opiniões que podem mudar em função dos fatos e das notícias que correm. E isso está cada vez mais frequente pela velocidade em que as informações circulam, principalmente via WhatsApp e redes sociais. 

Eu lembro que na eleição de 1989 para presidente, começamos as pesquisas eleitorais em pontos mais distantes dos centros, porque se acontecesse algum fato, o efeito seria mais rápido nas capitais do que no interior. Hoje já não é assim, porque na hora que acontece, simultaneamente todo mundo tem a informação. As mudanças são muito mais bruscas, mais abruptas e mais rápidas do que antigamente. 

Hoje, temos diversos meios de disseminação de informação, inclusive de notícias falsas. As metodologias e as formas de abordagens das entrevistas acompanham essas mudanças? Ou seja, a metodologia não estaria analógica para um mundo que virou digital? 

Não, isso foi evoluindo ao longo do tempo. Nessa época de que falei, a gente fazia o questionário no papel e depois passava pelo processo de digitação. Hoje, as entrevistas são feitas em tablets. À medida em que o entrevistador está fazendo a pesquisa, a entrevista sobe automaticamente para o nosso sistema. Temos recursos, por exemplo, pelo GPS, para saber onde o entrevistador está e se está trabalhando no lugar exato que pedimos. Também gravamos as entrevistas e, conforme elas sobem, há pessoas que as escutam para saber se o entrevistador está fazendo a abordagem adequada, se a leitura das perguntas está correta, se as respostas estão sendo bem anotadas, e temos outros métodos. 

Podemos fazer pesquisa por telefone, online, só que ainda não temos universalização em todos os métodos. Se for uma pesquisa online, por exemplo, existem ainda cerca de 20% a 25% da população que não têm acesso à internet. Numa pesquisa online, você deve ter consciência de que está deixando de fora esse segmento significativo, um determinado perfil de eleitor, por exemplo de classes mais baixas, que não estará sendo ouvido. Por telefone é mais fácil, porque hoje quase todo mundo tem um aparelho. A proporção de pessoas que não tem nenhum tipo de telefone fica em torno de 6%, um patamar bem menor, mas que também tem um perfil concentrado. 

Hoje, temos vários métodos diferentes em comparação ao que tínhamos na origem, de maneira que podemos até trabalhar com métodos híbridos, com uma parte das entrevistas feitas online e parte face a face. 

O Ipec é muito novo, embora tenha uma trajetória longa, e neste momento está bastante em evidência. Essa eleição provavelmente vai trazer consequências para todos os lados, mas, no caso de uma empresa consolidada como o Ipec, com você como líder, quais seriam os próximos passos da companhia? 

A empresa foi montada em fevereiro de 2021, temos pouco mais de um ano e meio, mas a equipe que tínhamos no Ibope permaneceu. Começamos no mercado com um posicionamento de reconhecimento da nossa empresa pela expertise da equipe. Estamos escolhendo um planejamento estratégico, com nichos que vamos fortalecer e outros que não precisam necessariamente ser trabalhados. 

Estamos também fazendo a leitura de como avançar nas questões mais digitais. Estávamos hesitantes em fazer discussões em grupos ou pesquisas mais qualitativas online, sem saber se funcionaria ou não, principalmente em relação à classe C, mas está funcionando super bem. Isso traz agilidade e diminui custos. 

Trabalhamos bastante no desenvolvimento de um relatório mais estratégico do que simplesmente de pesquisa. Temos focado bastante em entregar relatórios que sejam mais concretos, com ações táticas e estratégicas ao cliente. Nas questões mais tecnológicas, temos feito alguns experimentos e testes para desenvolver melhor nossa metodologia e a integração de informações. Hoje, temos muitas informações de todos os lados e, muitas vezes, você não sabe o que vale a pena olhar, o que é importante e o que não é. Pela nossa experiência em lidar com dados e várias fontes, temos a capacidade de fazer essa integração e essa leitura, concatenando todas essas fontes e trazendo como cada uma delas contribui para uma definição mais estratégica das ações a serem tomadas pelas empresas. 

Estamos vendo uma campanha de desmonte da credibilidade das instituições democráticas. O jornalismo, a imprensa e os institutos de pesquisa também entraram na mesma seara. Como lidar com isso? 

Não é a primeira vez que isso acontece. Todo final de eleição ocorre uma série de tentativas via projetos de de lei, investigação, CPIs, sempre há algum tipo de ação. Isso porque a pesquisa eleitoral acaba sendo um juiz. E os da frente nunca reclamam, mas os que estão atrás sempre se queixam. 

Também existe a questão de se a pesquisa influencia ou não no resultado. Eu sempre falo: ou ela influencia ou nunca acerta. Se ela influenciasse, sempre acertaríamos, e quem começa na frente acabaria na frente, mas não é isso que vemos. No final das contas, o que vemos são viradas de última hora e decisões estratégicas que o eleitor toma até com base na própria pesquisa. E é um direito dele, faz parte do processo democrático. Quanto mais informações o eleitor tem, melhor funciona a democracia. Ele tem o livre arbítrio de usar as fontes de informações que quiser para tomar as decisões de voto. 

Então, sempre surgem iniciativas para fazer CPI, audiência pública, uma série de ações, mas neste ano, especificamente, parece que elas estão mais focadas em não deixar que as pesquisas sejam divulgadas. Já ocorreram ações no passado, já houve julgamento do Supremo Tribunal Federal anteriormente e, mais uma vez, estamos lidando da mesma forma: conversando e explicando. 

Agora, surgem uns absurdos do tipo um Projeto de Lei que criminaliza as pesquisas que não acertaram o resultado da eleição. Mas a pesquisa não tem o papel de acertar. Temos uma legislação rigorosa para dar transparência a todo o processo. Todas as pesquisas que são divulgadas devem ser revisadas com antecedência no Tribunal Superior Eleitoral. Temos que dizer quem está contratando [a pesquisa], quanto está pagando, anexar a nota fiscal e o questionário inteiro. Descrevemos todos os processos metodológicos, tudo isso sete dias antes da divulgação e cinco dias completos entre registrar e divulgar. 

Além disso, essas informações ficam à disposição, os partidos e os candidatos podem requerer o acesso de forma detalhada via Ministério Público. Ele pode entrar com uma representação e pedir o acesso a todo o material da pesquisa, e isso é super comum. Você consegue ver se o questionário está bem feito, se tem alguma pergunta que possa estar influenciando ou não algum resultado. É uma transparência que não se vê em outros países. 

Estamos sempre juntos da Abep (Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa) para esclarecer ao máximo como funciona uma pesquisa eleitoral. Às vezes, nos acusam quando perdem a eleição, ou quando não estão à frente das pesquisas, e dizem que elas são manipuladas, fraudadas. 

As pesquisas envolvem o trabalho de muita gente. Na véspera do primeiro turno, tínhamos 1200 entrevistadores em campo fazendo pesquisa no Brasil inteiro. É uma indústria que movimenta muita gente, as pessoas estão ralando e dando duro para fazer o melhor trabalho. Isso não quer dizer que a pesquisa vai projetar o resultado da eleição, porque não tem esse papel. Não tem como espremer um indeciso na véspera. Ele é quem vai decidir, o voto dele é soberano e ele pode mudar de opinião ou querer fazer um voto estratégico na hora que ele entra na cabine.

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