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A procura da batida perfeita

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Opinião

A procura da batida perfeita

Eu prefiro me inspirar em outros processos criativos para ampliar o repertório e, nesse sentido, a música é a coisa mais próxima do divino que eu reconheço


2 de junho de 2025 - 6h00

Quando minha mãe, Ivone Kassu, faleceu, a primeira coroa de flores que chegou ao velório trazia a homenagem dos funcionários de um bar. A segunda a compor o cenário veio com um nome gravado: Zeca Pagodinho. A terceira carregava as condolências da banda Barão Vermelho. A quarta, um tanto suntuosa, ostentava em letras maiúsculas que havia sido enviada pelo governador do Estado do Rio de Janeiro.

Nada mal para uma mulher que saiu de Itu rumo à cidade de São Paulo no final dos anos 1960. Uma mulher de cabelos curtos e tingidos, que fumava em público — para o choque da comunidade ituense — e que, por isso mesmo, decidiu desbravar a cidade grande.

Parafraseando uma frase do trailer do filme Peixe Grande, de Tim Burton: quando conto a história da minha mãe, é impossível separar realidade de ficção. Porque tudo o que ela viveu aconteceu dentro de um universo tão improvável que se transforma em fantasia na minha memória. Um exemplo: Tim Maia ligava lá para casa sempre às três da manhã — numa época em que o toque de um telefone nesse horário era sinônimo de má notícia. A casa se acostumou com as ligações do Tim de madrugada, porém, porque tudo se apazigua. Mas, certa vez, minha mãe o questionou sobre esse hábito. E ele respondeu: “Ivone, eu vou pela agenda telefônica. O seu nome cai sempre nesse horário.”

Realidade? Fantasia? Não importa. O que importa, como lição que carrego desde aquele velório, é que é preciso buscar uma vida que talvez não faça tanto sentido olhando de fora, mas que faça total sentido para quem a vive. Minha mãe levou uma vida que roteiro algum seria capaz de prever. Saboreou até a última gota. Torrou tudo. Quando ela partiu, ficaram comigo os vinis — milhares deles. Todo o restante da casa, eu doei para o Retiro dos Artistas. Dona Ivone viveu uma festa que me deixou, como herança, a música em todas as suas facetas possíveis. É daqui que eu parto.

Para isso, preciso resgatar um fragmento de um texto que escrevi há mais de dez anos: “Música é a minha fluoxetina natural. É o meu Prozac. Minha playlist mental é denominada ‘Banho das Sete Ervas dos Descarregos’. Olho para as canções como uma curandeira olha ao seu redor. Stevie Wonder é o meu ‘quebra-barreira’. Marvin Gaye é o meu banho contra mau-olhado. Jorge Benjor é a minha ‘garrafada para gastrite’.”

Há quem traga da publicidade todo o seu arsenal de referências. Eu prefiro me inspirar em outros processos criativos para ampliar o repertório. Nesse sentido, a música é a coisa mais próxima do divino que eu reconheço. E, nessa banca de ervas em que busco as minhas poções de inspiração, Marcelo D2 tem sido o meu chá de “renova tudo”. Porque ele guarda em si uma capacidade infinita de reinvenção. E reinvenção é a criatividade em estado de pureza.

Compositor, produtor, cantor, letrista, roteirista, diretor de cinema, pai, marido, avô, um espírito inconformado. Marcelo D2 parece aquele cara que bate no centro do tabuleiro do jogo e sacode todas as peças. E faz isso não porque estava perdendo, mas porque tudo aquilo se tornou automático demais para suas expectativas. Então, ele pega um tabuleiro em branco, junta um punhado de ideias, inventa o próprio jogo e cria um novo manual de regras.

Quando ele canta que está queimando tudo até a última ponta, penso na mitologia da fênix, que monta seu ninho com incenso e ervas para ser incinerada pelo sol e renascer das cinzas. Ao queimar tudo, ele sempre ressurge em uma nova versão.

Qualquer cidadão poderia ter se acomodado com o sucesso arrebatador do Planet Hemp. Uma hora você está vendendo camiseta de banda de rock na porta do show; na outra, é a sua cara que estampa as camisetas pelas ruas do Brasil. O Planet Hemp não pediu licença, não bateu duas vezes na porta, não tocou a campainha. Eles meteram o pé mesmo, com força. Foram perseguidos, presos, incompreendidos. Não cederam um centímetro sequer nas suas convicções, mesmo com tanta porrada no caminho. Hoje, continuam extremamente relevantes — e livres da mesmice. O álbum Jardineiros, que marcou o retorno da banda depois de um hiato de 22 anos, é uma pedrada sonora da mais alta qualidade.

Só que, nas porradas que dá no tabuleiro, Marcelo D2 testa os limites da sua criatividade. Ele faz um roteiro pouco previsível de escolhas. Foi assim quando resolveu misturar hip hop com samba já no seu primeiro disco solo: Eu tiro é onda.

Coloca Samba de primeira para tocar e você vai ouvir que a pequena revolução já estava ali. Mas ele sabia que dava para lapidar mais o tema. Que dava para fazer uma parada inesquecível a partir daquela mescla. E assim o fez. A procura da batida perfeita é um disco fundamental na música brasileira. Uma potência criativa em todas as camadas. É o fruto do Andara criado na Lapa, abrindo mais uma vertente, mais um capítulo.

Não vou ficar aqui discorrendo sobre cada passo da carreira do D2. Vou pular para a fase Iboru, em que ele retorna ao tema do hip hop com samba. Só que, desta vez, é o samba que ganha mais protagonismo. É como se voltasse ao ponto de partida com um novo olhar. Como quem acredita que pode recomeçar com outra perspectiva. E ele faz. Traz os graves do hip hop para o samba. Reinventa mais uma vez. Já em SambaDrive, álbum gravado em 2024, ele convida o jazz para essa festa — e abre uma nova lente sobre suas músicas já consagradas. É um sujeito inquieto com tudo que lhe cerca.

Aprendi com minha mãe que uma das belezas da vida reside justamente na quebra do roteiro. Desde que ela se foi, tomo como referência criativa as pessoas que têm a sabedoria de recriar suas rotas. Escolhi falar de Marcelo D2 por sua atitude, por amor à música — e por respeito. Dona Ivone entenderia.

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