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Opinião

Alexandra Loras e o encontro com o vértice

Sinais de um tempo onde a hostilidade é uma zona de geração de swells que todos vêm se formar mas que ninguém parece ter coragem ou disposição de encarar depois que crescem


6 de dezembro de 2017 - 11h17

Créditos: reprodução

Ainda me lembro o que senti quando ouvi aquela mulher negra, pequena, falando um português com acento, contando como o dinheiro e o título de consulesa não a haviam protegido de ser barrada na porta do Clube Pinheiros por estar acompanhando uma criança loira, seu filho. Seu nome não estava na lista de babás. Ouvi-la me deu um prazer difícil de explicar. Finalmente alguém estava jogando por terra a ideia sem noção de que no Brasil o preconceito de classe é mais importante que o racismo.

Senti igual quando ela descreveu outra situação onde bolsas e casacos lhe eram dados para guardar por seus próprios convidados na porta do Consulado Francês. O que a consulesa passou não precisava ter ganho as ruas. Alexandra Loras podia ter vivido tudo isso em silêncio, com sorrisos discretos e gestos delicados, como aqueles que as pessoas treinadas para isso usam para lidar com contratempos que envolvem cultura, política, comportamentos e realidades sociais diferentes das suas e com as quais têm de lidar enquanto se mudam de um país para outro.

Alexandra poderia ter, simplesmente, entendido que o Brasil não era a democracia racial que ela imaginava e ter se protegido de novos mal-entendidos – como provavelmente o racismo que ela viveu foi chamado. Ela não cresceu aqui, não viveu em pequenas cidades do interior onde raramente os negros são donos dos supermercados, escolas e farmácias e também não viveu nas favelas que milhões de pessoas nesse país consideram o habitat natural dos negros assim como outros lugares simples, pobres, sem estrutura, muitas vezes sem saneamento, saúde ou educação adequados.

Leva um tempo para entender o que significa ser negro nesse nosso país onde a miscigenação é vista como um valor desde que gere embranquecimento. Alexandra nunca deve ter encontrado na igreja mulheres brancas casadas com homens negros tecendo novenas para que seus filhos nascessem claros como elas. Talvez ela não tenha vivido nada parecido com o que vivemos aqui, mas, mesmo assim, escolheu se importar e resolveu olhar e agir além de sua própria circunstância.

A primeira vez que vi Alexandra no palco, durante um dos vários eventos sobre mulheres que frequentei nos últimos dois anos, me perguntei onde tudo aquilo iria chegar. Perguntei-me o quanto ela iria querer e o quanto conseguiria se aproximar dos movimentos negros brasileiros e de suas pautas. O quanto ela ia se colocar disponível e o quanto estaria preparada para tudo o que isso significava. Não importa. Naquele momento, Alexandra ocupava um lugar de fala que lhe dava algo avassalador e raro por aqui, ela conseguia fazer com que os que se viam como mais ricos, mais bem educados, mais bem vestidos, mais cultos, mais preparados, mais entendidos e, muitas vezes, mais indiferentes, sentissem vergonha por serem cúmplices de uma realidade tão impossível de ser justificada.

Muitos artigos, palestras, entrevistas, capas de revista e apoios de personalidades depois, Alexandra encontrou o vértice. Sem nenhuma intenção, a ex-consulesa, como a imprensa sempre prefere se referir a ela, fez sangrar a pele negra mostrando rostos brancos coloridos com peles, cabelos e feições enegrecidos. Não vou discutir arte aqui. Não tenho as qualificações necessárias, só sei o que eu sinto e o que eu sinto sobre isso inclui a consciência de quem Alexandra Loras é e do que ela representou para todos nós nos últimos anos. Não estou falando da ex-consulesa, mas do ser humano incrível que decidiu não permanecer no silêncio, que entendeu que todos sentimos a dor da minoria de voz, que escolheu se expor, se colocar vulnerável, se posicionar e ajudar a mudar a realidade.

Ao fazer sangrar a pele que ela mesma habita, Alexandra sofreu enquanto, sem entender, foi massacrada ou simplesmente abandonada por brancos e negros que antes pareciam apoiá-la. Sinais de um tempo onde a hostilidade é uma zona de geração de swells que todos vêm se formar, mas que ninguém parece ter coragem nem disposição de encarar depois que crescem.

Ao pintar pessoas brancas de negras para falar de falta de representatividade e acreditando não estar se relacionando com o blackface, Alexandra trouxe à tona a terrível memória de um tempo em que pessoas brancas se pintavam de preto para criar caricaturas que reforçavam a discriminação, a injustiça, o racismo. Um excelente artigo de Rebecca Campos Ferreira, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), publicado na Revista Época em maio de 2015, explicou bem o tema ao falar da peça “A Mulher do Trem” que estava sendo encenada em São Paulo exatamente da mesma forma que foi encenada 12 anos antes e ganhou o Prêmio Shell de figurino: com quadros de humor onde artistas brancos com rostos pintados de negro repetiam a prática racista do século 19.

Claro que o trabalho de Alexandra como artista importa e claro que, como tudo, ele pode e deve ser discutido, mas, nas últimas semanas, Alexandra Loras reviveu a intolerância, a falta de diálogo, a arrogância, a solidão. Li cuidadosamente artigos e comentários onde estavam escritas frases como “volta pra França” e “racista”. Vale lembrar o mundo onde tudo isso acontece, esse onde quem poderia surgir e dizer “Ei espere! Você tem um ponto, mas essa mulher não merece ser tratada assim” prefere não se envolver, não correr o risco de se transformar em alvo. Deixa a Alexandra sofrer, essa é a história dela. Pois é. Não é não. Essa história é nossa.

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