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Procura-se um ídolo

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Opinião

Procura-se um ídolo

Não somos nós que escolhemos os nossos ídolos. De uma certa forma, e por caminhos que desconheço, eles é que parecem nos escolher


15 de setembro de 2016 - 8h00

ayrtonsenna

Foto: Reprodução

Em tempos de Jogos Olímpicos e Paralímpicos, é inevitável não pensarmos na importância de um ídolo esportivo para a construção da identidade de um país. Eu queria falar um pouco sobre esses ídolos e, em especial, sobre um deles. Justamente o que mais nos faz falta.

Não somos nós que escolhemos os nossos ídolos. De uma certa forma, e por caminhos que desconheço, eles é que parecem nos escolher. Pode ser uma questão de personalidade, de carisma, empatia, ou qualquer outro nome que os literatos venham inventar para descrever aquilo que não pode ser explicado. A análise dos nomes de alguns dos meus grandes heróis do esporte pode dar uma boa indicação da minha indiscutível fé no talento. Heleno de Freitas, Garrincha, Muhammad Ali, Maradona, John McEnroe, Piquet, Romário, entre outros, me fascinam por uma razão especial: são esportistas que provaram que o verdadeiro gênio possui um dom natural, um certo sopro divino, que os permite caminhar sempre alguns passos adiante dos simples mortais. Observem-lhes o físico, analisem- lhes os métodos de treinamento e vocês não encontrarão a razão de tamanho sucesso. As respostas parecem não estar lá. E não estão.

Dizer que esses atletas maravilhosos não treinavam ou que possuíam físico inadequado para a prática do esporte seria uma simplificação quase leviana. Mas é inegável que, da mesma maneira que Ali não tinha a massa muscular exigida para triunfar entre os pesos pesados, McEnroe, Guga e Romário tampouco se encaixam no biótipo padrão dos grandes esportistas de suas modalidades. E nem falar de Garrincha, esse sim, que sem a bola nos pés parecia incapaz até mesmo de andar, quanto mais de ganhar uma Copa do Mundo praticamente sozinho. O que transformou esses atletas em gigantes foi a sua inteligência, a sua criatividade, o seu temperamento indômito e quase irresponsável.

Mas um dos meus ídolos — ao menos um deles — era um desses heróis irretocáveis, que desde cedo pareciam predestinados a serem os maiores entre os maiores, sem falhas técnicas, de preparação ou muito menos de caráter. Estou falando, como todos já devem estar adivinhando, de Ayrton Senna.

Quando a maldita curva Tamburello nos privou para sempre das façanhas e do carisma do grande piloto, o povo brasileiro sentiu um vazio até então jamais experimentado. Pode parecer exagero, já que, para alguns, Senna foi apenas um ídolo esportivo, sem a transcendência de um grande líder político ou espiritual. Para a maioria dos brasileiros, no entanto, aquele jovem brasileiro era muito mais do que um piloto de Fórmula 1, esporte razoavelmente elitista, cujas regras e tecnologias o homem comum nem sonha em desvendar. Para essa imensa maioria, o que o Brasil perdeu naquele 1º de maio de 1994 foi um símbolo.

O símbolo de um Brasil alegre, límpido, destemido e confiante no futuro. De lá para cá, as manhãs de domingo nunca mais foram as mesmas. Perdemos, todos nós, as façanhas do homem, do profissional e do mito chamado Ayrton Senna da Silva.

Tive a honra de conhecer o Ayrton — e de trabalhar com ele por alguns anos. Não, não sou especialista em automobilismo nem era jornalista esportivo naquela época. Mas, ainda como um jovem gerente de marketing, um dos responsáveis pela publicidade do Banco Nacional — que durante uma década foi o patrocinador exclusivo do nosso campeão. Ninguém foi mais profissional do que ele. Nunca vi alguém gostar e lutar tanto por um patrocinador como o Ayrton. Recordo-me de uma história deliciosa, que aconteceu durante uma filmagem. Fui recepcioná-lo no aeroporto de Jacarepaguá, já que ele, apaixonado por velocidade, fazia questão de pilotar o próprio avião. Lembro até do prefixo: PTASN.

O percurso entre o pequeno aeroporto e o estúdio da Cinédia — onde os comerciais criados pela saudosa MPM seriam filmados — foi realizado num automóvel comum, que ficou retido num enorme engarrafamento em plena Cidade de Deus. Se alguém percebesse que o ídolo estava no carro, seria impossível impedir o pandemônio. Então aconteceu o impensável: as pessoas olhavam para o carro, encaravam o Senna, sacudiam a cabeça e… seguiam em frente! Ayrton Senna, num carro comum, em plena manhã de terça-feira, na Cidade de Deus?

Ora, é claro que isso não poderia estar acontecendo, pensavam os humildes transeuntes. Senna era um homem tão simples que tinha até mesmo o poder de passar desapercebido.

Conheço muitas outras histórias sobre o profissional, o homem, mas não posso deixar de destacar o mito Ayrton Senna. O País está cheio de bons profissionais — uns poucos como ele — e de homens de bem. Entretanto, desde que Senna nos deixou, o Brasil se tornou um absoluto deserto de ídolos. É verdade que apareceu um Guga aqui, um Serginho ali, mas um ídolo com a dimensão de Senna, capaz de levar multidões às ruas para celebrar suas vitórias e chorar sua morte, nunca mais tivemos.

Quantos eventos na história do País foram tão trágicos quanto a morte de Senna? Digo trágicos de verdade, no sentido de vermos pessoas chorando pelas calçadas, largadas junto ao meio-fio. Poucos dias foram tão tristes para nós quanto aquele Dia do Trabalho de 1994. Atrevo-me a dizer que só as mortes de Getúlio Vargas e Tancredo Neves, além da derrota na Copa de 50, causaram semelhante comoção. Nem a queda do inesquecível time de 82 e a não aprovação da emenda das “Diretas Já!” foram tão dolorosamente pranteadas quanto o desaparecimento do jovem herói.

Vácuo é um conceito que vez por outra é utilizado no automobilismo. O vácuo que a curva Tamburello deixou na vida de todos nós ainda precisa ser preenchido. Entretanto, quando reflito sobre o imenso legado de Ayrton Senna, seus títulos, suas vitórias, seu caráter, sua simplicidade, me convenço da virtual impossibilidade de encontrarmos alguém para ocupar tal vazio. Se Michael Phelps ou Usain Bolt tivessem nascido brasileiros, mesmo com dezenas de medalhas de ouro não acho que eles seriam mitos com a mesma abrangência de Ayrton.

Falta-lhes a dimensão da pureza, a sensibilidade, a humanidade e a simplicidade. Falta-lhes algo que não consigo explicar com palavras, mas que procuro descrever como transcendência moral. E se campeoníssimos como Phelps e Bolt não seriam capazes de preencher o vazio em nossos corações, quem mais será? Não sei a resposta. Mas torço, torço muito para que ele (ou ela) já esteja por aí, entre nós, dando os primeiros passos, os primeiros chutes na bola, as primeiras raquetadas ou, quem sabe, pilotando o primeiro carrinho de rolimã.

Num momento de grave crise institucional nos Estados Unidos, no final dos anos 60, Simon & Garfunkel escreveram uma canção cuja letra endereçava uma pergunta ao grande herói do beisebol nos anos 40: “Para onde foi você, Joe DiMaggio?”. E arrematavam: “Uma nação volta os olhos solitários em sua direção”. Pois hoje, mais do que nunca, sinto uma profunda vontade de perguntar: “Para onde foi você, Ayrton Senna?”. Meu Deus, como eu queria ter visto você acender aquela pira olímpica no Maracanã.

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