Em Cannes, é preciso jogar com o regulamento na mão
Não basta ter a grande ideia, entender os inúmeros meandros dos bastidores do festival e seu caro e complexo processo de inscrições é fundamental para chegar ao pódio
Em Cannes, é preciso jogar com o regulamento na mão
BuscarNão basta ter a grande ideia, entender os inúmeros meandros dos bastidores do festival e seu caro e complexo processo de inscrições é fundamental para chegar ao pódio
Isabella Lessa
15 de junho de 2025 - 15h46
Uma das coletivas dos júris de Cannes em 2024, com os brasileiros Anselmo Ramos e Diogo Machado (Crédito: Divulgação)
Em um passado analógico não tão distante, o processo de inscrição de campanhas no Festival Internacional de Criatividade de Cannes era físico: ganhava forma com formulários impressos, boards de apresentação e fitas de vídeo dos cases. Quando finalizados, esses materiais lotavam bagagens e atravessavam o Oceano Atlântico para chegar às mãos da organização e aos olhos críticos do júri.
Hoje, há quem possa imaginar que submeter um trabalho publicitário à análise na premiação de criatividade mais cobiçada da indústria tenha se tornado tarefa simples — afinal, a internet chegou e removeu, em muitos casos, a necessidade de se transmitir mensagens por meio de objetos.
Mas, na realidade, por mais que o digital tenha se sofisticado, com sistemas como o armazenamento de arquivos na nuvem, a complexidade de inscrever uma campanha publicitária aumentou desde que o Cannes Lions deixou de se resumir a um festival com as categorias de Film e Print e foi acompanhando, ano após ano, a proliferação de meios e segmentos de atuação da indústria.
O apreço do mercado publicitário brasileiro à competição anual da Riviera Francesa também se expandiu e se profissionalizou: o job de inscrever campanhas hoje é um business. Agências como AlmapBBDO, Africa Creative e LePub possuem áreas dedicadas — não somente a Cannes, mas às demais premiações que permeiam o calendário da indústria.
É o caso de Juliana Leite, que há sete anos e meio ingressou na Africa com a missão de gerenciar produção, orçamento, logística e planejamento de projetos encaminhados para os festivais. Vice-presidente de projetos especiais e conteúdo criativo, a profissional define o processo de inscrição em Cannes como um trabalho de imersão que começa meses antes. Cabe a ela e à sua equipe um olhar analítico e atento sobre o potencial da cada ideia e a definição sobre em qual categoria determinado trabalho se encaixa. “’Uninterrupted Ads’ desde o início pertencia à Audio e ganhou Ouro nessa categoria. A ideia inicial sempre tem uma categoria-mãe muito clara, mas, para fazer essa identificação, é preciso ter alguém dentro da agência que entenda de prêmio e que se dedique a saber do manual do festival”, explica.
O conhecimento dos regulamentos e prazos do manual é algo a que Fabiana Antacli, diretora de comunicação e cultura da BETC Havas, se dedica há 30 anos. Ela foi, inclusive, responsável por transportar muitos dos videocases analógicos para a Europa, quando trabalhava na então DM9DDB como diretora de relações internacionais. À medida que o Cannes Lions foi se tornando cada vez mais um motivo de esforço e dedicação das agências brasileiras, uma “inteligência em premiação”, conta: “Estudar o que ganhou nos anos anteriores é importante para entender em que categoria aquele trabalho se encaixa melhor ou tem mais chance de ganhar. Não basta apenas escolher uma categoria, é preciso analisar as subcategorias. O festival também sugere mudanças e é preciso argumentar e defender a inscrição, muitas vezes.”
Hoje, dentro das 30 categorias principais, existem mais de 600 subcategorias possíveis para se inscrever peças no Cannes Lions. Maria Eugênia Humberg, CEO da empresa de assessoria de imprensa e relações públicas Hum Comunicação, que também oferece serviço de inteligência estratégica em prêmios, afirma que as subcategorias são a parte mais delicada do processo de inscrição, pois há similaridade entre muitas delas. “À medida que se desenvolve o videocase, é possível puxar a peça para uma ou outra subcategoria. Às vezes, a agência escolhe uma, mas o global pede para mudar”, observa.
Muito antes dessas argumentações com a organização do festival e com as instâncias globais às quais as agências respondem, existe, porém, uma questão importante, que é a dos prazos. Historicamente, as agências brasileiras correm contra o tempo para entregar os videocases dentro das datas estipuladas pela organização do Cannes Lions e são muitos os casos, ao longo das décadas, em que novas datas foram negociadas e apresentações foram alteradas depois de terem sido inscritas.
Profissionais de criação ouvidos pela reportagem afirmaram que, ainda hoje, muitas empresas entregam os cases na última hora, mesmo sabendo que, ao fazer isso, o trabalho vai para o “fim da fila” e, por esse motivo, podem entrar em desvantagem em relação às que chegaram antes e já foram avaliadas pelos jurados.
Maria Eugênia entende que essa prática é, em parte, cultural, mas que, ao mesmo tempo, denota esmero das equipes pelo trabalho que será avaliado. E, na comparação com anos anteriores, hoje a regulamentação do festival é mais intransigente. “É preciso entregar no prazo ou é desclassificado”, diz. A entrega da peça no limite do deadline se explica, muitas vezes, porque envolve a aprovação de clientes ou redes de agências internacionais, acrescenta a profissional. “As operações internacionais estão mais coligadas. Há conselhos de prêmios que fazem votações das melhores ideias ao longo do ano, junto aos CCOs. É algo que se profissionalizou muito, porque gera reputação”, avalia.
Desde que começou a se envolver com as premiações na Africa Creative, Juliana percebe que a valorização em torno dos Leões de Cannes cresceu, sobretudo entre os clientes. “Foi mudando culturalmente ao longo do anos. Os clientes puxaram isso para o dia a dia, pois entenderam a importância dos festivais para as marcas. Isso muda tudo: há sete anos era muito mais interessantes para a agência e para o criativo ganhar um Leão. Hoje, o cliente trabalha junto conosco ao longo do ano, então, muda o investimento financeiro e de tempo dedicados ao projeto”, detalha.
O sucesso do encaminhamento do case até a organização do evento e do júri não se resume ao videocase, porém. Tanto Juliana quanto Eduardo Marques, CCO da VML Brasil, ressaltam que o texto que conta a história e os resultados do case são tão importantes quanto a parte audiovisual — que, nos últimos anos, parece ter ganhado mais importância que o próprio filme da campanha, em alguns casos.
“Quando o trabalho chega ao long list, o que diferencia uma peça da outra para que ela suba ou caia na avaliação é a informação contida nos formulários. Saber legimitidade, frequência, impacto, onde realmente surgiu o insight, o quanto é relevante é a estratégia de marca. Há muita checagem de informação, um aprofundamento que é feito por meio desse documento”, explica Marques.
A vice-presidente de projetos especiais da Africa observa que subestimar a importância do texto pode ser fatal para o case: “Vejo que não dar atenção ao projeto escrito é comum. Como jurada, tenho assistido cases que afirmam uma coisa, mas o texto diz outra completamente diferente, inclusive com números diferentes”, revela ela, que é jurada da categoria Sustainable Development Goals nesta edição do Cannes Lions.
Depois de muitos “bate-voltas” para entregar inscrições de peças in-loco, Fabiana, da BETC, segue considerando o festival do sul da França o mais minucioso em termos de inscrições. “Há muitos detalhes envolvidos, é a premiação mais dispendiosa e, culturalmente, é o evento ao qual o Brasil mais se dedica”, afirma.
Para Marques, da VML, por mais experiência que se tenha no Cannes Lions, saber como e onde inscrever a campanha é um jogo de xadrez que, a depender do próximo movimento, pode se avançar ou não. No fim, a decisão vai passar pelo crivo de pessoas, que podem estar mais ou menos suscetíveis a julgar bem aquela ideia: “A simples oportunidade de um criativo, de uma equipe, de uma agência, poder participar desse jogo já é uma sensação maravilhosa. Os dois minutos que o jurado usa para julgar aquela peça que levou 365 dias de suor para acontecer são decisivos”.
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