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O homem que amava caixas

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Ponto de vista

O homem que amava caixas


28 de novembro de 2013 - 9h33

“Aí está, esse cavaleiro errante que te acompanhará em todos os seus sonhos.” A dedicatória estava em um livro. O livro estava dentro de uma caixa. A caixa estava dentro de um armário. A mensagem estava dentro de mim. Não foi com pouca emoção que reencontrei essas palavras. Elas estavam esquecidas em uma edição especial de “Dom Quixote de La Mancha”. Pela data, foi um presente de Páscoa. Meu pai era mais apegado aos livros, aos cheiros das páginas, do que ao chocolate. Ler essa dedicatória tanto tempo depois me levou a um estado de nostalgia bruta. Um luxo que podemos nos dar ao envelhecer. Não de morar no passado, mas de visitá-lo.

Eu sei exatamente quando esse livro esteve nas minhas mãos. E descobri, ao fuçar no fundo da caixa, que posso remontar a minha infância pelo que li. Com “O Menino Maluquinho” veio o gosto. Com “Flicts”, a paixão por Ziraldo. A magia veio com “Tistu, o Menino do Dedo Verde”. E depois, com Júlio Verne e todas as suas aventuras. Cada livro da coleção Vagalume me fez uma criança mais curiosa. “Para Gostar de Ler” quebrou cedo o meu trauma com a literatura brasileira. Para um filho único, os livros são como irmãos que preenchem as tardes e acolhem à noite.

O ciclo continua. Alguns desses livros estão nas estantes das minhas filhas. A minha edição surrada de “O menino no espelho” mora ao lado da edição novinha delas. O cavaleiro errante segue em sua missão. Pelos livros das meninas, sei também sobre como elas eram naquele momento.  
wraps
Repasso as minhas histórias favoritas e reencontro “O Homem que Amava Caixas”, de Stephen Michael King. Uma poética história sobre o amor de um pai e seu filho. Não são nem 30 linhas. E bastam apenas 4 para roubar a sua atenção:
“Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.”
E há uma que acho especial: “O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava; então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.” Essa frase é o propósito da minha reflexão.

Estamos vivendo a época das caixas. Sem perceber, elas estão à nossa volta. Com bem menos poesia do que no livro, é claro. Na dificuldade de dizer o que realmente importa, usamos as caixas. Pense no briefing. Lá é possível encontrar caixas de todos os tamanhos. Elas mudam de agência para agência, mas continuam ali. Nada de errado com a existência delas. Elas estão ali para elucidar. Para traçar uma rota. O equívoco é acreditar que, ao preenchê-las, as questões estarão esclarecidas. Do mesmo jeito que o homem precisava de um intermediário para significar o que não conseguia dizer para o seu filho, o briefing muitas vezes utiliza o preenchimento de caixas para fingir explicar o que não conseguiu resumir. Para o homem, um “eu te amo” poderia substituir todo o ritual das caixas. Para um job, uma simples frase deveria ser capaz de explicar tudo o que precisa ser dito.

Você mostra uma caixa dessas de mudança para um adulto e ele lhe dirá que é uma caixa, ora. Você mostra a mesma caixa para uma criança e em segundos ela será transformada em nave, teletransporte, navio. E eis aqui uma definição sobre criatividade. A capacidade de olhar para algo e imaginar que aquilo pode ser tudo, menos o óbvio. Alguns clientes preferem que as coisas estejam dentro das caixas. O fato de que tudo esteja absolutamente organizado e passível de ser ticado traz uma falsa sensação de segurança. Se seguirmos cada um desses passos, estaremos protegidos e seremos compreendidos pelo consumidor, pensam eles. Há uma outra leitura desse mesmo fato. Dentro da caixa podemos passar despercebidos. Volte para a sua infância. Caixas sempre foram grandes esconderijos. Lá ninguém nos achava. Acontece o mesmo com ideias. As que cumprem todas as regras são aquelas com maior chance de ficarem no limbo. Passam sem lembrança. Na ânsia de atenderem cada norma, elas não surpreendem. Só entregam o esperado. A caixa, na verdade, está sem conteúdo.

Quando falo de caixas, falo de processos, também. São primos porque nasceram com a mesma necessidade: a de estruturar as coisas. O fato de que esteja tudo alinhado não significa que vai funcionar. Ou que é bom. Gosto muito de uma história pitoresca do Garrincha. Um técnico desenhou um quadro com esquema tático e começou a dizer como o adversário jogaria e o que cada jogador deveria realizar em campo. Tudo estava previsto. Garrincha levanta a mão e faz a pergunta que só os inocentes fariam: você combinou isso com o outro time? Bingo. Quem muito estrutura não está preparado para o acaso. Podemos validar, acordar, estar na mesma página. Podemos ter quantas reuniões forem necessárias até que surja uma ideia. Nesse período, o concorrente pode lançar o mesmo conceito, alguém pode lembrar que isso já existe, o criativo pode pegar uma virose e o job mudar de mãos. E quebram-se caixas e esquemas. Nessa hora, estatísticos comportam-se como aquele urso da Disney na temporada de caça. Correm de um lado para o outro. Ou eles buscam um novo processo para organizar o processo que deveria ter funcionado. Ou deitam no chão e fingem-se de tapete.

É engraçado que as mesmas pessoas que pensam em caixas disseminam a expressão fora da caixa. Fico confuso. É para ficar onde, afinal? Talvez eles tenham percebido que não há muita diferença entre delimitar e engessar. No fim, estamos presos do mesmo jeito. Usamos caixas em apresentações para dizer com muitos slides o que poderia ser dito em poucos. Por quê? De novo, usamos o intermediário. Desconfiamos do simples e complicamos para que a mensagem nos pareça mais crível. Criamos um imenso racional para justificar o que aparece, muitas vezes, por instinto. Para o homem, construir caixas era o jeito complicado, mas possível de traduzir o que sentia pelo seu filho. Para nós, o keynote, o manifesto, o mood board são maneiras necessárias de trazer lógica para o que é subjetivo. Propaganda é simples. Difícil é fazer bem, já dizia o Fabio Fernandes.

Usamos caixas para falar com o próximo. Caixas do WhatsApp, do Facebook, do Instagram. Coisificamos o curtir, o gostar, o querer. Poderia adentrar nessa teoria, mas um vídeo faz isso de um jeito tão assertivo que nem me atrevo a pisar no território. “The innovation of loneliness” diz tudo em imagens tão simples quanto a do homem que amava as caixas.

Dizem que precisamos dominar todas as disciplinas. Proponho um contraponto: faz falta a indisciplina. Ela, sim, vai nos tirar do óbvio.
Meu pai tinha uma facilidade para dizer o que sentia. O tempo foi seu único intermediário. Foi a nossa caixa. Na dedicatória, ele disse que eu seria acompanhado por um cavaleiro errante. Quero crer. Porque talvez ele não soubesse que, em poucos anos, teríamos tanto medo de errar que nos faltaria a ousadia para acertar. No mundo de hoje, o Dom Quixote não pode ser mais um errante. Ele é mais seguro encaixotado.  

André Kassu, diretor de criação da AlmapBBDO

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