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O jogo da vida

Avanço da tecnologia, investimento das marcas e um número cada vez maior de influenciadores ampliam o protagonismo da cultura gamer no lifestyle


30 de outubro de 2020 - 17h51

Há algum tempo, a linha que separa os games da cultura pop, música e cinema vem desaparecendo. Com isso, um segmento antes antes nichado e direcionado a grupos específicos, como o de games, vem extrapolando os limites e influenciando cada vez mais o estilo de vida das pessoas, envolvendo diferentes segmentos, da moda à cultura. Considerando que as novas gerações já estão cada vez mais imersas nesse ambiente, e que franquias como Fortnite, Free Fire, Overwatch e outras se reúnem em torno de comunidades, um novo movimento se desenha fazendo com o que os games sejam a arte urbana dos nossos tempos.

Ação de lançamento do jogo Crash Bandicoot 4: It’s About Time uniu Carreta Furacão com o protagonista do game

A exemplo dos games inseridos na cultura pop, recentemente, para anunciar o lançamento de Crash Bandicoot 4: It’s About Time, a CP+B, agência da Activison, desenvolvedora do jogo, uniu o Crash, personagem principal do game, com a Carreta Furacão, grupo de pessoas fantasiadas de personagens de desenhos, de Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo, que ficou conhecido na internet por sua performance em um trem. A ideia de unir o Crash com a Carreta, e formar a Crasheta Furacão, surgiu da semelhança do personagem do jogo com um ser humano fantasiado e com sua personalidade brincalhona. “Lançamos a campanha com um post simples falando ‘quem vocês acham que é o próximo participante da Carreta Furacão?’, só com a silhueta do Crash. Várias pessoas participaram tentando desenhar lá dentro o que era”, revela Marcos Medeiros, sócio e CCO da agência.

Outro movimento recente no sentido de aproximar os games da vida das pessoas foi a ação da Brahma dentro do jogo Grand Theft Auto V (GTA V). Para promover o lançamento da versão long neck de sua cerveja Duplo Malte, a cervejaria inaugurou um bar temático dentro do Cidade Alta, servidor brasileiro do jogo. Claudio Lima, CCO da Cheil Brasil, agência responsável pela iniciativa, comenta que além da dificuldade de achar um jogo que permitisse essa abertura, o maior desafio da agência foi realizar uma ação de bebida alcoólica dentro de um game, respeitando todas as regulamentações do Conar. Lima conta que o servidor foi escolhido por só aceitar pessoas maiores de 18 anos.

Ação da Brahma no servidor brasileiro de GTA V uniu amigos em um bar temático da cervejaria dentro do jogo

A música nos games
Conhecido por suas trilhas sonoras, o Tony Hawk’s Pro Skater, da Activision, foi um dos primeiros jogos a unir essas duas indústrias (música e games), em 1999, quando a internet ainda estava engatinhando no Brasil. Hoje, 21 anos depois, essa união não poderia ser diferente. Para anunciar o lançamento da remasterização do jogo, a CP+B criou uma campanha com um novo vídeoclipe de Confisco, canção da banda Charlie Brown Jr., que se tornou a primeira música brasileira na trilha sonora do jogo.

“O Brasil tem uma identificação enorme com o skate e com toda a cultura envolvida. Logo após o anúncio de Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2, a comunidade brasileira se mobilizou pedindo a inclusão do Charlie Brown Jr. no jogo”, comenta  Anadege Freitas, head of marketing da Activision no País. O brasileiro Bob Burnquist, maior medalhista da história do X Games, que também está na remasterização, ligou para o próprio Tony Hawk falando sobre os pedidos dos fãs em ter a música no jogo, revela o sócio e CCO da CP+B.

Depois de Tony Hawk’s Pro Skater, outros jogos como Guitar Hero, Brütal Legend, Just Dance, Fortnite e Free Fire também apostaram nessa união entre música e game. Em abril, o crossover entre o rapper americano Travis Scott e o Fortnite foi um marco neste sentido. A “turnê” do cantor nos servidores do battle royale da Epic Games teve a participação de 27,7 milhões de jogadores únicos, com um pico de 12 milhões de usuários simultâneos, e atingiu a marca de 45,8 milhões de visualizações.

Em maio, o DJ brasileiro Alok também realizou um show dentro do Free Fire, jogo desenvolvido pela 111dots Studio e publicado pela Garena. Segundo Tatianna Oliva, sócia e diretora da Cross Networking, agência responsável pela ação, a iniciativa partiu dos empresários do DJ, porém, a Cross trouxe a ideia de colocar Alok como um personagem jogável. “Acredito muito que esses segmentos se unindo podem aproveitar muito mais os mercados, não só o de games”, revela a sócia. A cantora Anitta também está olhando para esse universo. Em setembro, ela realizou sua primeira stream jogando Free Fire e ,desde então, não parou mais.

Canção Confisco , de Charlie Brown Jr. ganhou clipe para o jogo Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2

Outro jogo que é referência quando o assunto é união entre música e game é o Just Dance, desenvolvido pela Ubisoft. Desde 2009, o jogo de dança já usou músicas de vários artistas, como Lady Gaga, Spice Girls, Elvis Presley, Shakira, Ricky Martin, Justin Bieber, Queen, Beyoncé, entre outros. Entretanto, o jogo não conta somente com artistas internacionais. No fim do ano passado, o hit “Só Depois do Carnaval”, da cantora Lexa, foi a música escolhida para representar o Brasil no game. “Foi uma excelente experiência, tanto pela perspectiva dos jogadores, uma vez que a música tem muito da energia de Just Dance, quanto do ponto de vista do marketing local, já que a faixa da Lexa no jogo explodiu e foi um enorme sucesso”, conta Bruna Soares, diretora de desenvolvimento de negócios e parcerias estratégicas da Ubisoft Brasil.

Além de Lexa, músicas de outros cantores brasileiros já entraram no catálogo do jogo. O hit “Dançando” de Ivete Sangalo, foi o primeiro, em 2014, seguido de “Bang”, de Anitta, e “Te Dominar”, da cantora e bailarina Daya Luz, em 2017, além de “Bum Bum Tam Tam”, de MC Fioti, em 2019. Segundo Bruna, música e games têm uma forte conexão, especialmente por conta das trilhas sonoras, que muitas vezes marcam uma experiência e ficam para sempre no imaginário dos jogadores. “O Just Dance, entretanto, vai além disso. Estamos falando da união entre o universo da música pop e o dos videogames, com muita imersão e interatividade”, comenta a diretora, revelando que o jogo tem mais de 67 milhões de cópias vendidas.

Experiências in e out games
Falar da indústria de games é falar de estilo de vida. “Hoje o que temos de mais valioso das pessoas é, sem dúvida, o tempo e todos querem aproveitar ao máximo cada momento. Logo, é papel fundamental da indústria oferecer experiências ricas dentro e fora do universo do game”, comenta Bruna, da Ubisoft. Apesar do setor já representar, há bastante tempo, o principal faturamento da indústria do entretenimento, o que vem chamando a atenção das marcas não-endêmicas é a experiência 360 graus que os jogos proporcionam. Um exemplo dessa inserção dos jogos no estilo de vida das pessoas, é o uso do Just Dance como forma de exercício físico. “Durante o período de quarentena, tivemos um aumento recorde de consumo do jogo, exatamente por ele ter se tornado um aliado contra o sedentarismo” revela a executiva.

Com cada vez mais tempo em casa por conta do isolamento social, 72% dos gamers brasileiros ampliaram o período dedicado aos jogos, de acordo com estudo da NZN Intelligence, plataforma de inteligência e pesquisa da NZN. “Como as pessoas estão vivendo muito dentro do jogo, você precisa trazer esses elementos da vida delas para dentro. Não adianta querer que o jogo seja só fantasia e que a pessoa veja a sua marca só quando ela está no celular. É preciso pensar em como é possível trazer a sua marca para parte da vida dela”, comenta Lima, CCO da Cheil Brasil/Latam.

Para Anadege, da Activision, há três razões principais pelas quais os jogos estão se tornando cada vez mais um estilo de vida. A primeira delas é que eles oferecem não somente diversão, mas também a satisfação com o senso de recompensa ao atingir objetivos. A segunda é que fazer parte do ambiente gamer também traz a sensação de comunidade e de pertencimento a um grupo, e com isso, a possibilidade de conexão e diversão com amigos, independentemente da distância. Já a terceira é que as pessoas descobriram que assistir outras pessoas jogando pode ser tão divertido quanto jogar.

Dos consoles às camisetas: a força do licenciamento

Mario Bros. extrapolou os games e virou uma forte marca de licenciamento

Fundada em 1972 por Nolan Bushnell e Ted Dabney, a Atari foi uma empresa de produtos eletrônicos e uma das principais responsáveis pela popularização dos videogames pelo mundo. Apesar de ter sido encerrada em 1984, a companhia continua sendo uma marca forte quando o assunto é licenciamentos. “Se entrar no Ebay ou Mercado Livre e procurar Atari vai ver tudo menos videogame”, comenta Marcos Medeiros, da CP+B, ressaltando que o merchandising é um mercado que não tem fim. “O Mario Bros. é maior do que o videogame. Se pensar na Sega, tem o console e o Sonic que tem o filme com o Jim Carrey. É uma coisa que se retroalimenta e isso não é exclusivo do videogame”, avalia.

Para desenvolver produtos que alcancem as expectativas da comunidade gamer, a Activision Blizzard trabalha em conjunto com seu time global de produtos licenciados, de acordo com Anadege, head of marketing da Activision no Brasil. “Os jogadores hoje querem mostrar suas paixões e viver experiências cada vez mais imersivas com seus jogos favoritos. Com isso, vemos que há espaço para fazermos parte de mais momentos das vidas dos fãs através de produtos que realmente tenham uma combinação perfeita com o lifestyle deles”, reforça.

Entretanto, não são somente as desenvolvedoras que estão se preocupando com a qualidade de seus produtos licenciados, as marcas que fazem parceria com os jogos, também. Segundo Bruna, da Ubisoft Brasil, ao olhar os estandes de marcas em grandes feiras da indústria pelo mundo, como BGS e Game XP, é possível perceber que os grandes retailers já perceberam a relevância dos games em suas coleções. “A moda já percebeu isso há um tempo e, com certeza, outras indústrias, como a de alimentação, também farão parte desta transformação”, avalia. A executiva ainda comenta que “ao passo que pessoas engajam com seus games favoritos e buscam outras formas de consumir esses produtos, mais portas se abrem para empresas de diferentes segmentos conversarem com o público gamer”.

Para Claudio Lima, da Cheil, essa união entre marcas e games é benéfica para ambas as partes. “Essa relação é muito positiva tanto para a marca, que vai estar num ambiente que ela nunca esteve, quanto para o jogo, que vai ter uma fonte de renda que também nunca teve. Isso é uma coisa muito bacana para o mercado de games”, finaliza.

Tecnologia e influenciadores
Por falar em games como conteúdo, Anadege destaca a quantidade de streamers e criadores alcançando altos números de audiência. “Os números de audiência do Brasil nos campeonatos globais estão entre os maiores do mundo e é algo que cresce cada dia mais”, reforça. Os grandes influenciadores de jogos eletrônicos trazem alcance e relevância a toda a comunidade. “Eles são responsáveis por aumentarem a forma como os games fazem parte do lifestyle das pessoas de uma forma mais mainstream”, afirma Bruna, da Ubisoft.

Cláudio Lima, da Cheil, indica que com o crescimento dos streamers e influenciadores de games, a identificação se tornou mais fácil. Entretanto, não são só streamers ou gamers famosos que acabam influenciando esse estilo de vida nas pessoas. No início de outubro, o Fortnite e a sua agência, Cheil, criaram a ação “O Paizão tá on”, que uniu o ator e  ex-BBB Babu Santana com os streamers Patriota e Flakes Power, em uma livestreamining de uma hora.

Fortnite reuniu Babu Santana em uma live streaming com os gamers Patriota e Flakes Power

Outro fator importantíssimo na transformação dos games em um estilo de vida é o avanço tecnológico. “Com mais tecnologias, possibilidades de conexões e experiências mais imersivas e diferenciadas, os games estão conquistando cada dia mais fãs e engajando-os por mais tempo”, afirma Anadege, da Activision, destacando a condição de experiência em conjunto que os jogos são capazes de proporcionar

Uma das tecnologias que foi muito relevante para o crescimento da indústria é o mobile. “A partir do momento que você consegue levar o jogo para dentro do celular, ele vira uma válvula de escape, uma saída, um momento de relax”, comenta Tatianna Oliva, sócia e diretora da Cross Networking, ressaltando que “o game se tornou um lifestyle a partir do momento em que o celular começou a ser algo mais acessível para todos, principalmente no Brasil”.

“Com a tecnologia, acredito que cada vez mais o videogame está conseguindo emular coisas que não conseguia antes”, avalia Marcos Medeiros, sócio e CCO da CP+B Brasil, reforçando que este processo não acontece somente nos games, mas na cultura pop em geral. “O geek é o novo ‘cool’. Virou um lifestyle de fato. Antes a imagem do geek era quase que um clichê. Hoje isso não existe mais. Em eventos como a Comic Com, vemos gente de todos os tipos e percebemos que game virou um lifestyle”, completa.

Streamer como lifestyle

Transmitir horas e horas de um desempenho em um game se tornou não só essencial para cativar um número cada vez maior de fãs e movimentar comunidades, mas também um estilo de vida. Rodrigo Russano Dias, gerente de Marca e PR da Nimo TV, explica que as comunidades são o que dão força para as plataformas e, principalmente, ao streamer, gerando fidelidade. “Por termos uma grande diversidade de talentos, inúmeras comunidades são formadas em torno dos nossos streamers, o que nos leva a dialogar com diferentes tipos de público. É interessante falar das comunidades dos nossos streamers, uma vez que a relação dentro desses grupos é de muito carinho e respeito, inclusive com quem não faz parte desse mesmo núcleo. São como grandes famílias, que se apoiam em todos os momentos.”, afirma Russano. Ainda segundo ele, e-sports e lifestyle são dois conteúdos que ainda vão crescer muito. “As lives estão indo além dos jogos e hoje pode-se encontrar facilmente pessoas mostrando suas habilidades com a música, desenho e cosplay. Com o crescimento desses dois segmentos, que estão sendo cada vez mais profissionalizados, marcas não-endêmicas passam a ter novos espaços e oportunidades para investir em ações, gerando maior engajamento no mundo dos games e streaming.”

Evolução constante
Apesar de parecer que não há mais possibilidades de união entre games, música, cultura pop e influenciadores, ainda há muito a ver explorado. Segundo Bruna, da Ubisoft, nos últimos anos, a indústria deu um passo muito grande neste sentido, porém ainda é possível ir além, com pessoas mais engajadas; marcas de outros segmentos apostando nos jogos eletrônicos e desenvolvedoras buscando novas formas de engajar seus fãs. “A magia do mercado de games está nas mudanças, em uma evolução constante. É um mercado que exige novidades e que tem em sua natureza o aprimoramento e as novas ideias”, opina.

O futuro do ecossistema de games está caminhando para a questão da valorização dos jogos como conteúdo não somente para se jogar, mas também para se assistir, de acordo com Lima, da Cheil. “O futuro vai ser muito mais sobre a questão de conteúdo do que só sobre jogar”, enfatiza. A gamificação, ou seja, essa lógica de tarefa e recompensa, é outra tendência apontada por Lima. A exemplo disso, Tatianna, da Cross Networking, cita o NextJoy, conta digital do banco Next, do Bradesco, voltada para o público de até 17 anos. “Eles estão gamificando de um jeito onde o pai vai conseguir controlar a criança por meio de jogos e a criança vai poder fazer conta de quanto ela tem e do quanto ela pode gastar”, completa.

Além da gamificação e do conteúdo, novas tecnologias como a inteligência artificial, realidade aumentada e o realismo gráfico também trarão experiências mais inovadoras e imersivas para dentro dos jogos e fora deles. “Isso ampliará as possibilidades de marcas e produtos de diferentes segmentos oferecerem e conquistarem seus consumidores por meio de experiências diferenciadas nesses conteúdos, conectando-se de uma forma marcante em suas vidas”, afirma Anadege, da Activision. Medeiros, da CP+B Brasil, concorda com a executiva e avalia: “Hoje se fosse um investidor olharia para a indústria de games muito mais do que para a indústria de cinema, porque a chance de ter retorno é muito maior. Logo, mais dinheiro, mais investimento e mais resultado”.

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