Assinar

Um universo, diversos players

Tradicionalmente associado ao público masculino, mercado de games já tem maioria feminina no Brasil, mas ainda busca acabar com o preconceito contra mulheres e LGBTQIA+


11 de outubro de 2021 - 11h53

Quando se pensa em jogos eletrônicos, normalmente o que vem à cabeça são crianças e adolescentes, em sua maioria meninos, sentados em frente à uma tela de TV ligada ao console ou PC. Porém, esse estereótipo está cada vez mais distante de representar os gamers da atualidade. Formada por jogadores entre 66 e 78 anos, a equipe Young Guard de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) fez história. Em maio deste ano, o time entrou para o livro dos recordes como o time mais velho a participar de um torneio de eSports na Ucrânia. Esta, entretanto, não é a primeira vez que uma equipe com pessoas mais velhas compete em CS:GO. Em junho de 2019, a Silver Snipers, da Suécia, foi campeã mundial na categoria Sênior, em torneio realizado durante a DreamHack Summer de Jönköping, contra a equipe Grey Gunners, da Finlândia. Priscila Queiroz, head de publishing da Riot Games, entende que essa ligação direta e quase que inconsciente que se tinha entre jogos eletrônicos e crianças e adolescentes no passado, foi muito construída por meio das decisões de marketing da indústria. Porém, essa realidade vem mudando.

Público gamer está cada vez mais diverso, mas mercado ainda combate preconceito (crédito: Ilustração/Giovanna Papariello)

Pesquisa recente realizada pela Global Web Index (GWI) revela que os gamers estão envelhecendo. Segundo a análise, a parcela de jogadores entre 55 e 64 anos aumentou 32% desde 2018. “Cada vez mais vamos ver faixas etárias mais altas aderindo aos games e eSports como fruto de uma transformação cultural”, afirma Igor Cardoso, head de eSports da Game XP. Para a diretora de planejamento e dados da Druid, agência especializada em games, Bruna Pastorini, o mercado está passando por um momento de transição. “Nós, que trabalhamos com isso no dia a dia, já nos ligamos que game não é só coisa de menino e de jovem há muito tempo. Só que para esse conhecimento sair do nicho, de quem respira esse assunto, até chegar ao mainstream e atingir as marcas, leva um tempo”.

Além dos mais velhos, as mulheres começaram a entrar cada vez mais nesse cenário e, atualmente, estão dominando o mercado de games no Brasil. De acordo com a Pesquisa Game Brasil, 73,4% dos brasileiros jogam jogos eletrônicos e as mulheres representam 53,8% desse total. Apesar desse número, muitas delas ainda têm que se esconder atrás de avatares ou nicknames (apelidos) masculinos para não sofrerem preconceito, discriminação ou até mesmo assédio.

Paty Landim, gerente de projetos do servidor Cidade Alta, pertencente à empresa Outplay, vivenciou uma experiência ruim neste sentido por volta de 2012, quando começou a fazer conteúdo de games para o YouTube. “Eu saí, larguei completamente e só fui voltar em 2014. Eu estava mais velha, já com uma outra cabeça, não estava tão traumatizada com aquilo”, relata a gerente, reforçando que a situação em relação ao preconceito contra a mulher no cenário está mudando, mas que ainda há muito o que evoluir. A head de marketing e parcerias da Game XP, Paula Magrath, ressalta que o que acontece no universo de games é reflexo do que acontece na vida.

Para Newton Filho, head de esportes na área de produtos & serviços digitais da Globo, esse é um problema da cultura gamer. “Entre os que chamamos de hardcore gamers, há uma predominância masculina. Protegidos pelo anonimato e estimulados por um ambiente de competitividade e agressividade, criou-se um ambiente machista e misógino”. Apesar dessa triste realidade, que dificulta ainda mais que as mulheres ocupem um destaque maior nessa comunidade, o head entende que as publishers estão incentivando a redução da toxicidade entre os jogadores, mas que ainda existe um grande caminho a ser percorrido.

Comunidade mais inclusiva
Assim como as mulheres, o público LBTQIA+ está se inserindo nos games e tem buscado cada vez mais espaço. As amigas e streamers Samira Close, drag queen, e Rebeca Gamer, pessoa não-binária (que não se identifica com nenhum gênero), têm se destacado nesse universo, justamente por levarem representatividade para um ambiente considerado ainda muito machista e homofóbico.

Como observado pelo head da Globo, as publishers, desenvolvedoras e plataformas de streaming estão criando maneiras de tornar o ambiente dos jogos eletrônicos menos tóxicos. A Riot Games, dona de jogos como League of Legends e Valorant, por exemplo, criou uma disciplina chamada player dynamics, que reúne desenvolvedores de produtos e pesquisadores para entender o que empresa pode implementar nos produtos como intuito de gerenciar e minimizar comportamentos perturbadores. “Eles têm usado aprendizado de máquina e inteligência artificial para tentar identificar esses comportamentos e aplicar punições de acordo”, afirma Priscila, head de publishing da Riot. Com isso, atualmente a empresa consegue identificar termos ofensivos no chat dos jogos e punir essas pessoas com restrições de chat ou até mesmo banimentos. Segundo Priscila, o próximo passo é implementar esse sistema no chat de voz, o que requer um desafio ainda maior da equipe.

Cantora Malía é madrinha da Grrrls League e criou música e clipe que falam sobre resiliência (crédito: divulgação)

As empresas organizadoras de campeonatos de eSports também têm um papel fundamental na promoção da diversidade e da inclusão. Neste sentido, em julho deste ano, a Esportsmaker anunciou um novo torneio de Valorant no Brasil, o Spike Ladies. Com premiação de R$ 15 mil, o campeonato foi parceiro oficial da VCT Game Changers, iniciativa da global Riot Games para fomentar o cenário feminino do jogo, e contou com patrocínio de Razer e Vertagear, além de parceria com TikTok Brasil, Predialnet e Mais Esports. O próprio VCT Game Changers, criado neste ano pela Riot, contou com duas edições, R$ 460 mil em premiações e patrocinadores como Buscofem e Lenovo.

Além de ajudar a fomentar a participação das mulheres no cenário dos esportes eletrônicos, a entrada de Buscofem no projeto VCT Game Changers reforçou o posicionamento da marca de que todas as dores são legítimas e merecem ser tratadas com respeito e atenção. “Mapeamos todas as dores dessas mulheres gamers e fomos em busca de um projeto que ajudasse a resolver todas essas dores. Nisso, encontramos o Valorant Game Changers, que estava comprando as mesmas lutas que nós”, conta Bruna Pastorini, diretora de planejamento e dados da Druid, que atende a conta de Buscofem.

Outra liga de eSports voltada às mulheres é a Grrrls League, lançada em dezembro de 2020 pela Game XP. Com R$ 200 mil em premiação, a liga feminina de CS:GO tem Oi, como patrocinadora, e Lenovo e Mercado Bitcoin, como apoiadores. “Como Game XP, sabemos que temos um papel muito importante na comunidade e puxamos muito para nós a responsabilidade de dar apoio para essas atletas, de fomentar a participação delas no universo de eSports”, enfatiza Paula Magrath, head de marketing e parcerias do evento. A Game XP também convidou a artista Malía para ser a madrinha da liga, e lançou música e clipe, no qual a cantora fala de resiliência, palavra que representa bem a história de vida das participantes do campeonato. Além disso, em agosto deste ano, a Oi lançou a websérie Grrrls League, que, por meio de quatro episódios de dez minutos cada, apresentou a história da liga através do olhar de nove jogadoras.

Projeto da Riot Games com patrocínio de Buscofem fomenta participação feminina no setor (crédito: divulgação)

Poder do smartphone
Quando se fala de inclusão e diversidade no mundo dos games, não se trata somente da representação de pessoas diversas no ecossistema, como também da democratização e do acesso a esse universo que, para muitos, ainda está muito distante. Segundo dados da 8ª edição da Pesquisa Game Brasil, embora a principal classe social dos jogadores no Brasil seja a B2 (27,6%), com a consolidação dos smartphones como principal plataforma de jogos no País, é possível identificar uma ascensão de pessoas de classes sociais baixas e médias (C1, C2, D e E) entre o público gamer, representando quase metade dos consumidores de jogos no país (49,7%, na soma). “Quando falamos de acesso aos jogos, passamos ainda por algumas dificuldades regionais no que diz respeito aos custos de aquisição de produtos e aparelhos. Por isso, quando temos os jogos de celular, a tendência é eles super crescerem em números, justamente por ter acesso tecnológico mais simples”, enfatiza Igor Cardoso, head de eSports da Game XP.

Pensando justamente nessa democratização do games, após um ano do lançamento do Alok GameChanger, o DJ anunciou uma nova edição do campeonato de Free Fire. Neste ano, o campeonato, que nasceu com o objetivo de mudar a realidade das pessoas da comunidade, dando oportunidade para jogadores e para os talentos desconhecidos no universo gamer, teve o patrocínio de marcas como Itaú Unibanco e Trident. “O GameChanger tem como objetivo principal a promoção de oportunidades e acessibilidade. Foi com isso em mente que criamos políticas que incluíssem equipes formadas por mulheres e indígenas. Temos a intenção de viabilizar a cada edição ainda mais a democratização no universo gamer”, afirma Alok. Segundo o DJ, o projeto estabeleceu uma cadeia de parcerias justamente para que o campeonato vá além da competição. “Demos suporte tecnológico aos jogadores, capacitação profissional e ajuda de custo mensal aos talentos descobertos em edições passadas. Queremos ampliar cada vez mais estas ações com apoio de empresas que realmente desejem se conectar com a comunidade gamer de uma forma legítima”, ressalta Alok, reforçando que agora o GameChanger passa a ter uma maior autonomia para que atinja mais regiões e pessoas.

Já o Itaú está patrocinando a Taça das Favelas Free Fire, maior torneio de Free Fire entre favelas do mundo, criado e promovido pela Favela Esporte, em parceria com a Central Única das Favelas (Cufa). Na edição de 2021, o banco viabilizará diversas ações para promover o torneio e dará suporte aos times envolvidos, incluindo distribuição de chips de conexão de internet para as equipes que avançarem para as etapas estaduais. O projeto é uma cocriação de Cufa, Loud, Itaú e Druid, e parte da campanha #IssoMudaOGame. A final do campeonato está programada para acontecer em 4 de dezembro e a premiação total deste ano será superior a R$100 mil. “Vamos ajudar a dar visibilidade para esse campeonato, usar a força do Itaú para estimular que os jovens se inscrevam, que entrem nesse campeonato, que queiram vivenciar o game como ferramenta de transformação”, reforça Bruna, diretora de planejamento e dados da Druid.

Esportsmaker lançou curso gratuito XBOOM com foco na capacitação de jovens a partir de 12 anos (crédito: divulgação)

Newton Filho, head de esportes na área de produtos & serviços digitais da Globo, entende que o surgimento cada vez maior de jogos mobile, como o Free Fire, que não exigem celulares de última geração, estão contribuindo muito para a inclusão de negros no universo de eSports. “Existem também iniciativas isoladas, como o AfroGames, que realiza um trabalho maravilhoso em favelas, oferecendo aulas de inglês e informática para crianças, e conta com um time profissional, com staff e salário. É uma ação com impacto direto na vida dessas crianças, mesmo que não se tornem jogadores profissionais”, enfatiza.

Tendo em vista que a inclusão digital será cada vez mais importante no mercado de trabalho, o portal esportivo ge estreou em agosto uma campanha que incentiva a diversidade e o combate ao racismo no universo gamer. “É fundamental deixar explícito que o território do eSports não é uma terra sem lei. Campanhas como a do ge são essenciais para que o debate chegue a todo mundo, em todos os ambientes. Porém, não se pode ficar apenas no plano teórico”, defende Marcos Luca Valentim, um dos fundadores do podcast Ubuntu Esporte Clube, reforçando que a campanha é didática e vem para mostrar que a sociedade como um todo precisa entender como e por quais meios o racismo opera. “A partir do momento em que você entende do que se trata realmente e não muda sua postura diante da situação, você deixa de ser um produto do racismo estrutural e se torna a própria estrutura”.

A Esportsmaker, por sua vez, lançou neste ano um projeto formativo inicial em games totalmente gratuito. O XBoom tem foco na capacitação de jovens a partir de 12 anos da rede pública de ensino e jovens que estão iniciando no mercado de trabalho. “Estamos criando a oportunidade desse jovem, no mínimo, experimentar como é essa indústria, e ele ter a chance de conhecer e ver se gosta daquilo, se quer lutar e batalhar para conseguir alguma coisa naquela direção. O XBoom cria essa primeira janela de oportunidade”,  explica o CEO da companhia, Leandro Silva.

Publicidade

Compartilhe