A beleza de cada um e de todos
Antropóloga e professora da ESPM, Paula Pinto analisa a comunicação feita pelo setor de higiene e beleza, além das dificuldades das marcas para abraçar determinados temas sociais
Antropóloga e professora da ESPM, Paula Pinto analisa a comunicação feita pelo setor de higiene e beleza, além das dificuldades das marcas para abraçar determinados temas sociais
Roseani Rocha
13 de outubro de 2017 - 12h12
Queiram grupos mais conservadores ou não, temas como diversidade e respeito às diferenças, assim como o do empoderamento feminino, estão na agenda social do mundo e, como não poderia deixar de ser, também são abraçados pelas empresas que compõem o mercado de higiene e beleza. Na entrevista a seguir, a antropóloga Paula Pinto, professora do MBA em Ciências do Consumo da ESPM, comenta as formas como tais assuntos têm vindo à tona e os desafios das marcas em abraçá-los verdadeiramente.
Meio & Mensagem – Em relação a outros setores da economia, como avalia o de higiene e beleza no que diz respeito ao espaço concedido à representação da diversidade brasileira?
Paula Pinto – Talvez esse seja o segmento que lidere essa discussão sobre diversidade, com alguns casos mais bem-sucedidos e outros bem mal feitos. Não teria como ser diferente, pois quando falamos do setor, falamos de padrões de beleza, formas de obedecer esses padrões ou lidar com eles. É o fórum onde o assunto deveria acontecer. Existe também um pouco na moda, mais antecipadora, questionadora, às vezes, mas higiene e beleza está puxando porque não temos mais como fugir desses assuntos. Homens e mulheres estão pedindo produtos e abordagens diferentes e é impossível fechar os olhos para isso. Antes, olhava-se como movimentos de minoria, as questões de raça, cabelo, gênero. Hoje, são movimentos de grande escala e as marcas que não falam sobre isso estão acuadas para se posicionar.
M&M – Há alguns anos, uma das grandes multinacionais de higiene e beleza fez uma linha de desodorantes para negros. O produto (que era adocicado, enjoativo) não durou no mercado. O que uma marca deve observar ao tentar agradar ou atender necessidades de um público específico?
Paula – Desodorante e poderíamos estender a xampu, condicionador. Era uma aberração, porque todos tinham embalagem marrom. Olhava como consumidora e achava que já tinha algo errado. Como pesquisadora, criticamente, pensava: era tão óbvio que pessoas negras precisam comprar produtos com embalagem marrom? Vasenol tinha creme, Seda tinha xampus marrons. Isso mostrava preconceito e desconhecimento. É como falar “índios”, colocando pessoas de origens, peles, cabelos diferentes no mesmo rótulo. Os produtos foram tirados do mercado, ainda bem, pois alguns preconceitos eram tratados ali como verdade. A ideia de que negros têm pele mais resistente que dos brancos e bastava um creme bem melado para cuidar, por exemplo. Fiz um grande estudo sobre pele negra (e não negros, o que é muito diferente) para a Natura, e vi o quanto de preconceito racial está embutido nessa ideia de pele resistente. Já ouvi que nem precisam de proteção solar, sendo que a maior incidência de câncer de pele no Brasil é em homens negros, acima de 50 anos, justamente porque são trabalhadores rurais ou urbanos, que atuam nas ruas. Já dá para ver aí um problema. Os protetores solares são brancos, sendo que 80% da população brasileira é preta. A indústria continua com uma base de três cores ou quatro e, em proteção solar, nem chega ao negro. Existem duas posturas, uma inclusiva, que olha a humanidade como grande potência, e inclui, e outra que segrega.
M&M – O que foi, em sua opinião, essa campanha de Dove na Inglaterra, acusada de racismo?
Paula – Não foi a primeira vez; Dove já teve de tomar cuidado outras vezes, com uma mulher negra e outra branca, numa ação que falava de antes e depois. No Brasil, teve aquela com duas portas na frente de um shopping – bonita ou feia. Você pode ter uma boa intenção, a marca ser construída em cima de uma ideia boa, mas mal executada. Que tipo de decisão uma marca me obriga a tomar, ao me fazer escolher se sou feia ou bonita? Não havia ali nenhum conhecimento científico, o que os publicitários queriam dizer, para afirmar que as mulheres tinham baixa autoestima. Era uma pergunta descabida, junto com essa campanha de agora. São erros de interpretação, mas eu não poderia fazer a afirmação de que Dove é racista, por todo seu histórico. No entanto, ela derrapa. E teria de ter corrigido da forma mais rápida possível. Alguém aprovou o filme. Se houvesse representatividade efetiva, com mulheres e homens negros na empresa e agências, teria menos probabilidade disso acontecer. Parece um pensamento branco, masculino, acima de 40 anos, bastante retrógrado, que é a elite da criação publicitária, que acha que sua ideia criativa era mais relevante que qualquer realidade.
M&M – No segmento capilar, foi notável a mudança de discurso das marcas da pregação do liso perfeito para a do “liberte seus cachos”. Essas mudanças de discursos num período às vezes relativamente curto não podem soar hipocrisia ou oportunismo aos olhos dos consumidores?
Paula – Dependendo da maneira como é feito, é super oportunista. Diversidade deveria ser entendida a partir da perspectiva da empresa também. Talvez não seja sua causa a igualdade de gênero, mas seja a igualdade racial, a de acesso à educação. O que soa falso é quando pega um tema que não tem nada a ver com ela, porque tem que aparecer up to date com as manifestações. Quando o banco que apoiava arte recua de forma covarde, mostra no mínimo que estava mal informado. Tem trilhões de assinaturas para aprovar um projeto como esse e ninguém olhou as obras? Foi oportunismo sobre o tema, falar sobre gênero, mas desconhece o tema e estava despreparado para defender a causa. Isso é algo que mancha uma imagem para sempre. No que diz respeito a xampus e condicionadores, agora falam de cabelo crespo, que é diferente de ondulado. Ainda existe um processo; talvez o “liberte seus cachos” seja um avanço, não necessariamente oportunista, mas começa a atender um anseio humano. Muita empresa corre atrás dessa ideia; não dá mais para ser oportunista, tem que ser verdadeiro. Você faz xampu para brancos? Ou para todos os tipos de cabelos?
M&M – Você auxiliou a Natura num estudo sobre o público masculino, que foi base para uma ação publicitária da companhia. As marcas em geral têm investido em produtos para eles, entretanto, já ouvi uma alta executiva de uma delas dizer que os latinos ainda estão longe de aceitar determinados produtos que existem, por exemplo, na Europa. O machismo é o maior empecilho para o desenvolvimento da categoria no Brasil?
Paula – Sim e não. Uma parte sim, porque esse machismo não é masculino, mas social. Nós mulheres somos muito machistas. Não temos coragem de convidá-los a fazer uma série de coisas; e 90% dos lares brasileiros são dominados pelas mulheres. Estamos confundindo muito. Claro que homens são machistas, mas mulheres também são. Já ouvi muitas mulheres dizendo que o homem só não pode se cuidar mais do que elas. É um processo coletivo de aprendizado. Outro ponto é que há coisas que de fato nunca vão acontecer na América Latina ou no Brasil, independentemente de ser homem ou mulher, porque no Brasil, valorizamos corpo e não o rosto, como primeiro lugar de cuidado simbólico, por muitos motivos. Produtos para corpo, nas vendas, estão dez mil anos à frente. Já a Europa tem outra forma de entendimento sobre corpo, rosto e beleza. Lá, eles não fazem depilação, mas os brasileiros e latinos já fazem muitos procedimentos estéticos no corpo e falam disso com naturalidade. Dizer que homem só pode cuidar de cabelo e barba é reprodução de machismo.
M&M – De forma geral, a beleza é mais libertadora hoje ou ainda tem um viés opressor?
Paula – Falamos hoje com muito mais liberdade. Temos capacidade de fazer questionamentos com mais liberdade, e é super legítimo que tenhamos conseguido, mas não deixa de ser opressora. Continuamos de alguma forma sentindo alguns pesos que não conseguimos tirar, principalmente para mulheres de 40 e poucos anos em diante, por mais que saibamos distinguir certos discursos. As novas gerações lidam com mais facilidade, mas não significa que seja menos opressor. É mais brincalhona em relação a essa opressão, o que tem a ver com manifestações de gêneros, com a permissão de assumir outras identidades, a beleza está dentro de um aspecto maior, transita por outros assuntos. A geração das minhas filhas é mais irreverente, mas determinados padrões ainda são opressores: a loja de brinquedo ainda tem o batonzinho para as meninas e o carrinho para os meninos; recém-nascidos com furo na orelha, não é menos opressor. Estamos movimentando, lidando com esses padrões de forma mais elástica, mas não se trata só de padrão de beleza, mas de padrões sociais.
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