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A tirania da meritocracia

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Opinião

A tirania da meritocracia

A ética do vencer pelo próprio esforço, que marca a meritocracia, reforça a responsabilidade individual por nosso destino e pelo que recebemos


22 de agosto de 2022 - 6h00

Meritocracia: Mito ou Realidade?

(Créditos: Shutterstock)

Um dos hábitos adquiridos na pandemia foi o de ouvir podcasts e assistir quase que de forma compulsiva séries em plataformas de streaming. Claro que eles já faziam parte do meu dia a dia antes de 2020, mas ganharam nova escala na minha dieta informacional ao longo dos últimos dois anos. A consequência perversa disso é que acabei diminuindo o meu ritmo de leitura, pois o dia continua tendo 24 horas – talvez a única certeza que temos atualmente.

Exatamente por isso, nem sempre a leitura de livros acompanha o ritmo dos lançamentos. Uma das obras que estava na minha pilha já há um bom tempo e que só neste último mês consegui dar cabo de finalizá-la é “A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?” (Record, 2020), do filósofo norte-americano Michael J. Sandel. Ao combinar linguagem acessível com profundidade analítica, o autor faz uma radiografia importante dos labirintos das sociedades capitalistas contemporâneas.

“Você consegue, se tentar.” Para Sandel, esse mantra tão arraigado na cultura liberal é o responsável pela escalada populista e conservadora nos Estados Unidos e no mundo. No livro, o autor descreve como a meritocracia que marca moralmente a sociedade, dividindo-a entre vencedores e perdedores, se tornou central nos países anglo-saxões, especialmente nos Estados Unidos. Logo na introdução, Sandel aborda o escândalo de 2019 que revelou um esquema de fraudes para ingressar em universidades de elite dos Estados Unidos, como Yale, Stanford, Georgetown e a Universidade do Sul da Califórnia (USC). Esse caso é emblemático das consequências da cultura meritocrática, de sua relação com a desigualdade crescente e de como o mérito individual não pode estar desvinculado de fatores além do nosso controle (renda e cuidado familiar, por exemplo).

O autor traça uma história moral do mérito, mostrando como essa ideia está conectada a visões religiosas, como a ética protestante do trabalho enquanto responsável pelo destino. O privilégio aristocrático foi substituído pela ideia de mérito, que parte do pressuposto de que os indivíduos são premiados por seus esforços e habilidades, e não em razão da condição social de nascimento. No entanto, Sandel argumenta que as elites descobriram como passar suas vantagens adiante, o que acabou convertendo a meritocracia em uma aristocracia hereditária que legitima as desigualdades.

“Se meu sucesso é obra minha, algo que ganhei por meio do talento e trabalho duro, posso me orgulhar disso, confiante de que mereço as recompensas que minhas conquistas trazem. Uma sociedade meritocrática, então, é duplamente inspiradora: afirma uma poderosa noção de liberdade e dá às pessoas o que ganharam para si mesmas e, portanto, merecem. Embora seja inspirador, o princípio do mérito pode tomar um rumo tirânico, não apenas quando as sociedades não permitem que seja cumprido, mas também – especialmente – quando o fazem. O lado sombrio do ideal meritocrático está embutido em sua promessa mais sedutora, a promessa de autorrealização pessoal. Essa promessa vem com um fardo difícil de suportar. O ideal meritocrático coloca grande peso na noção de responsabilidade pessoal.”

O argumento central de Sandel é de que as elites construíram a ideia meritocrática de que com trabalho árduo e talento qualquer pessoa pode ascender socialmente. Logo, o mérito fica intrinsecamente ligado aos critérios utilizados para avaliar sucessos e fracassos na sociedade. A promessa meritocrática — marcante no ideal do “sonho americano” — era a de que o esforço individual resultaria em uma mobilidade social maior e mais justa.

Ao mesmo tempo, a ética do vencer pelo próprio esforço, que marca a meritocracia, reforça a responsabilidade individual por nosso destino e pelo que recebemos. Por causa disso, a sociedade vê as pessoas que não alcançam o sucesso ou não ascendem socialmente como “fracassadas” e responsáveis pelo seu próprio infortúnio, de modo que isso desencadeia uma política de humilhação dos “perdedores” e arrogância dos “vencedores”.

O livro de Sandel também pode ser incômodo para liberais igualitários, já que o autor critica a premissa de que a meritocracia seria justa caso as oportunidades fossem iguais para todas as pessoas. É exatamente por isso que o livro tem valor. Para o autor, até uma meritocracia perfeita seria ruim e teria um lado sombrio para a democracia e a comunalidade.

Mas qual seria a solução para esse problema? Sandel apresenta algumas propostas para suavizar “os danos causados pela tirania do mérito nos vencedores” e “desconstruir a hierarquia da estima que concede mais honra e prestígio a estudantes matriculados em universidades de renome”. No caso das universidades, o autor propõe alternativas como a extinção dos testes padronizados nos processos de admissão, a criação de ações afirmativas com recorte social (algo já implementado no Brasil com as cotas sociais e raciais) e uma “loteria dos qualificados” — uma espécie de sorteio entre as pessoas inscritas que preenchem requisitos básicos e com regras para garantir a diversidade—, bem como a valorização de faculdades públicas comunitárias, cursos técnicos e profissionalizantes e treinamentos específicos para empregos.

No Brasil de 2022, quando a lei das cotas completa dez anos e deverá entrar em revisão em breve e em um momento em que a pauta da diversidade, equidade e inclusão faz parte da agenda do mundo corporativo e da indústria publicitária, essa leitura é mais do que necessária. É, no entanto, desconfortável como a realidade que nos cerca.

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