Nelson Rodrigues: o transmidiático

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Nelson Rodrigues: o transmidiático

A genialidade de um autor pode ficar encoberta pela tirania da crítica de sua época ou pelo pensamento nublado de uma geração cheia de dogmas ? sejam eles de esquerda ou direita. Mas a qualidade de uma obra gigantesca jamais deixará de ser reconhecida pela história


24 de agosto de 2015 - 9h51

Por Marcos Caetano*

As andanças pelo mercado me levaram a conhecer pessoas extraordinárias. Uma delas foi o Maurício Mota, sócio da produtora e agência de conteúdo e storytelling Wise Entertainment, com sede em Los Angeles, responsável pela série East Los High, uma das líderes em downloads no Hulo e indicada a vários Emmy. Mas não é sobre o Maurício que eu vou falar hoje e sim sobre a mãe e, principalmente, sobre o avô dele.
Quando Sonia Rodrigues — filha, biógrafa e, nas horas vagas, uma espécie de médium psicográfica de Nelson Rodrigues — me delegou a missão de escrever um prefácio para uma coletânea de crônicas esportivas do pai, confesso que tremi nas bases. Nada pode ser mais lisonjeiro e assustador para um esforçado cronista do que o desafio de escrever sobre o autor que definiu o gênero no País. Na verdade, Nelson não foi o melhor cronista esportivo do Brasil: foi o melhor do mundo. E apenas para não encerrar o parágrafo sem pingar-lhe um pouco mais de espanto, é preciso dizer que o bardo da Aldeia Campista foi, ao lado de Rubem Braga, o maior cronista, esportivo ou não, da nossa literatura. Um talento grande demais para ficar restrito à classificação limitadora e às vezes preconceituosa da expressão “cronista esportivo”.

Muito já foi dito sobre o virtuosismo das crônicas de Nelson, embora alguns de seus biógrafos insistam na tese de que ele não entendia patavina de futebol, o que é uma enorme injustiça. Para mim, Nelson não era um cronista que pouco entendia de futebol. Ele era justamente o que mais entendia. Como só os profetas enxergam o óbvio, apenas a nossa Flor de Obsessão conseguia entender o esporte num sentido mais amplo e indiscutivelmente mais verdadeiro: uma metáfora do Brasil e das glórias e derrotas do ser humano. Gostar de futebol apenas como jogo é tão limitante quanto gostar de música pelo barulho ou de pintura por conta das cores. Imaginar que o futebol se resume à tática é como crer que o melhor psicólogo é aquele que mais conhece a fisiologia do cérebro. Nelson foi uma espécie de psicólogo que entendia bastante sobre o funcionamento do cérebro. Mas que, acima de tudo, era capaz de vasculhar as mais profundas entranhas da personalidade e os mais recônditos escaninhos da alma. E é por isso que ninguém jamais entendeu tanto de futebol quanto ele.

Felizmente, as crônicas de Nelson são documentos vivos e constituem prova categórica de seu conhecimento esportivo e — por que não? — sociológico. Em meio a uma geração de analistas que projetava as mais terríveis humilhações para o nosso futebol, sobretudo depois do fracasso de 1950, ele foi o arauto da consagração daquela que viria a ser a grande seleção das copas de 1958, 1962 e 1970. Como se isso não bastasse, foi o primeiro a outorgar o título de rei a Pelé. O “complexo de vira-lata” do brasileiro, que parece ter voltado com força total depois dos 7 x 1 e de tantos escândalos de corrupção, foi percebido pelo bruxo da Rua Alegre com formidável antecipação. E essa clarividência não foi uma virtude restrita à crônica esportiva. No conjunto da obra de Nelson, o que mais chama a atenção é o extraordinário destemor de opinião do autor. A propósito disso, já que falei da injustiça de se rotular o autor como um cronista que não entendia de futebol, é simplesmente incompreensível que alguém com a coragem de fatiar em suculentos bifes as mais corpulentas vacas sagradas nacionais possa ter sido chamado de reacionário. Mas isso é algo que as novas gerações de admiradores e estudiosos de sua vasta obra estão cuidando de corrigir.

O tempo mostrou que o reacionário era, na verdade, um grande provocador. Nelson tinha razão sobre Pelé e Garrincha, mas também sobre o comunismo e a luta de classes, sobre a caretice da opinião pública, sobre muitos dos debates da cultura nacional, sobre a vida, a morte e a paixão — sem a qual, segundo ele, não se consegue sequer tomar um Chicabon. Ao seu jeito, com opiniões definitivas e hipérboles delirantes, ele foi um grande libertário. Atacava com todos os adjetivos que conhecia e alguns que inventava qualquer tentativa de submissão da liberdade individual a um pretenso “bem maior”, normalmente representado por algum sistema político, linha de pensamento ou patrulhamento cultural. No trepidante Fla x Flu de sua vida, o grande inimigo foi a burrice. Contra ela, representada por idiotas da objetividade, cretinos fundamentais, lorpas, pascácios e quadrúpedes de 36patas, Nelson dirigiu grande parte dos golpes nas teclas de sua célebre máquina Olivetti.

É uma pena que um personagem tão transmidiático — como diriam os moderninhos —, que sempre soube se mover com enorme fluência entre a televisão e o jornal, entre o cinema e a literatura, entre a cultura e o esporte, não tenha tido a oportunidade de viver nestes tempos de internet e redes sociais. Os folhetins de Nelson foram, sob muitos aspectos, os primeiros blogs. Suas peças foram pioneiras em transitar entre teatros, salas de projeção e aparelhos de televisão. Poucos autores da história se sentiriam tão à vontade quanto ele, em meio a tantas possibilidades de se fazer ouvir. É por isso que o tempo só o engrandece.

Cem anos depois de seu nascimento, a obra do Nelson cronista encontra-se quase tão reconhecida quanto sua consagrada dramaturgia. A genialidade de um autor pode ficar encoberta pela tirania da crítica de sua época ou pelo pensamento nublado de uma geração cheia de dogmas — sejam eles de esquerda ou direita. Mas a qualidade de uma obra gigantesca jamais deixará de ser reconhecida pela história. A história acabou fazendo justiça ao primeiro autor transmidiático do País. E hoje, para seu desespero póstumo, o homem que odiava as unanimidades simplesmente se tornou uma delas.

(*) Marcos Caetano é diretor global de cultura e comunicação corporativa da BRF

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