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Cuidado com o que você promete

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Ponto de vista

Cuidado com o que você promete


26 de abril de 2011 - 12h24

Como quase todo mundo, prefiro um bom comercial a um filme medíocre. Até porque um dos valores da boa propaganda, à parte sua contribuição efetiva aos negócios e às marcas, é a capacidade de capturar e traduzir – como fazem o cinema, a música e a arte em geral – o espírito do tempo. Aquilo que nos move, comove ou inquieta. E se há uma marca que é referência nesta dimensão da propaganda-arte é certamente a Coca-Cola, cuja linha de comunicação tem conseguido, ao longo das décadas, ao mesmo tempo retratar e promover um estilo de vida, tornando-o aspiracional e universal. 

O celebrado comercial Mundo Virtual, por exemplo, criado pela Wieden+Kennedy para o Superbowl de 2009 – aquele em que um garoto caminha pelas ruas cruzando com pessoas que se transformam em avatares à sua passagem – é emblemático deste poder da propaganda, ao comentar o quanto estamos cada vez mais imersos num mundo de “personas” virtuais.

No mesmo ano, para se contrapor ao pessimismo mundial decorrente da mega-crise financeira, a Coca acertou outra vez com o antológico “Estás aqui para ser feliz”, em que narrava o encontro emocionante do homem mais velho do mundo com um bebê que acabara de nascer – um sucesso instantâneo na Internet. 

De lá para cá sua comunicação vem aprofundando a estratégia de “branded content” e “storytelling”, construindo narrativas cada vez mais ousadas para associar a marca com a felicidade e a construção de um mundo melhor. Mas o recente comercial “Razões para Acreditar” causa certa perplexidade, como uma nota fora do tom.

Ainda que a música do Oasis na voz de crianças ao longo de todo o filme seja inapelavelmente envolvente, agride o bom senso a forma como se alinhavou um monte de dados disparatados para argumentar que o mundo está cada vez melhor. Que base teria a alegação de que para cada tanque de guerra fabricado no mundo seriam produzidos milhares de bichos de pelúcia? Ou de que para cada político corrupto 8 mil pessoas doam sangue? Não seria subestimar nossa inteligência sugerir que milhares de mães que fazem bolos de chocolate compensariam cada cientista dedicado ao desenvolvimento de novos mísseis? Como minimizar o custo humano da construção de muros, como o que separa famílias palestinas na Cisjordânia, argumentando que se colocam 200 mil tapetes de boas vindas todos os dias pelo mundo afora? A mensagem final é ainda mais surpreendente: para cada arma que se vende, informa o comercial, 200 mil pessoas compartilham uma Coca-Cola…

É certo que, à medida que consumidores bem informados e conectados em rede cobram mais responsabilidade social das empresas, as mensagens da maioria das grandes marcas vêm ganhando um tom quase messiânico e religioso – a ponto de, às vezes, a gente se pegar perguntando em que negócio de fato estas empresas estão. Os comerciais de certos bancos, por exemplo, soam como pregação moral, e há companhias petrolíferas que se proclamam tão engajadas com o meio ambiente que seu discurso se confunde com o das próprias ONGs do setor.

Mas esta linha de comunicação, que subestima a capacidade crítica do público, parece pouco sustentável no novo ambiente de transparência e ativismo digital. Um dos riscos é que mensagens de baixa credibilidade tendem a ser parodiadas quase que instantaneamente nas redes – no fenômeno conhecido como cultural jamming, em que os críticos se apropriam do discurso e até da linguagem das marcas para atacá-las. A Unilever experimentou este tipo de guerrilha semântica com o belo filme Onslaught  

para o Dove, da linha Real Beleza, que critica a pressão da indústria da beleza sobre as meninas. Apesar de bem intencionado, o filme não demorou a ganhar uma versão reposta do Greenpeace  

que plagiou a mesma linguagem visual para alegar que a Unilever estaria destruindo florestas na Malásia para a produção do óleo usado na fabricação do sabonete da marca.

Agora, foi a vez da Coca-Cola de gerar polêmica. Mal o comercial entrou no ar, surgiu a primeira paródia  

no YouTube, sugerindo que, para cada Coca-Cola que se vende, há mais diabéticos ao redor do mundo.

Outro risco deste tipo de campanha é chamar a atenção para eventuais incongruências entre o que a marca promete na sua comunicação e aquilo que a corporação pratica na realidade. Empresa alguma hoje está a salvo de enfrentar protestos e questionamentos, e qualquer pesquisa rápida no Google revela alguns dos desafios de reputação enfrentados pela Coca ao redor do mundo, em especial na Índia, onde tem sido acusada de se apropriar de recursos escassos de água em detrimento da população carente.

Quem tem analisado com propriedade esta defasagem entre o discurso das marcas e suas práticas é o especialista em reputação Carlos Alberto Messeder, diretor do programa de comunicação da ESPM do Rio de Janeiro. Em uma entrevista que gravei recentemente com ele, Messeder observou que todas as grandes corporações estão hoje, o tempo todo, literalmente sentadas em cima de crises potenciais de reputação. E alertou que esta vulnerabilidade tende a aumentar quando cresce a dissonância entre a comunicação da marca e a realidade. “É preciso lembrar”, adverte, “que comunicação é promessa e o negócio é entrega”.
 

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