“Precisamos desaprender muita coisa”, diz Djamila Ribeiro
Filósofa e ativista social fala sobre a responsabilidade das empresas em combater as desigualdades no País e comenta suas (poucas) atuações em ações publicitárias
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Roseani Rocha
2 de agosto de 2021 - 6h00
Palestrante na edição 2021 do Marketing Network Internacional, realizado no final de julho pelo Meio & Mensagem em Foz do Iguaçu, a filósofa Djamila Ribeiro concedeu entrevista na qual destaca pontos em que o debate público sobre pautas sociais, como o racimo estrutural avançou ou nem tanto assim. Além de estar à frente da coleção Feminismos Plurais – que já tem 10 títulos publicados de diferentes autores, sobre questões como lugar de fala, apropriação cultural e racismo recreativo – no ano passado ela e um time de pedagogos e outros colaboradores transformaram o projeto em uma plataforma educativa de conteúdos audiovisuais sobre esses e outros temas. Já no último domingo, 1º de agosto, aconteceu o lançamento oficial de seu livro de memórias Cartas para minha avó, no qual Djamila trata do trabalho fundamental, mas quase sempre invisibilizado, das mulheres. Ela também é destaque como entrevistada na edição desta semana do Meio & Mensagem (ed. 1971, de 2 de agosto).
M&M – No MNI, você veio falar a executivos de marketing sobre “diversidade”. Foi rasgado o véu com o qual se buscava camuflar o racismo estrutural no Brasil? E qual seu grau de otimismo em relação a que essa tomada de consciência se reverta em práticas que tornem a sociedade, efetivamente, melhor para todos?
Djamila – Uma coisa em que avançamos nos últimos anos é que esse debate foi posto em público. Tem se falado muito mais. Claro que fruto de resultados dos próprios movimentos negros no Brasil, de várias organizações e intelectuais negros que, historicamente, estão refutando o mito da democracia racial. Hoje, as pessoas estão falando muito mais sobre isso graças a esses trabalhos. Mas claro que ainda temos um longo caminho pela frente, que é entender que esse tema não diz respeito só às pessoas negras, mas a todos e todas nós, que não é um tema individual, mas estrutural, então, significa que se uma empresa tem majoritariamente funcionários brancos há reprodução do racismo estrutural, uma vez que a população negra é a maioria da população. Muitas vezes, as pessoas não entendem. “Ah, mas eu não sou racista”, eu indivíduo. Como se isso dependesse só do seu ato e não entendendo toda a questão do nosso próprio País, o último das Américas a abolir a escravidão. Essa discussão precisa se tornar ações, se criar políticas efetivas dentro das empresas, com metas: em tantos anos, vamos chegar a tantos números de pessoas negras, LGBTs, mulheres. O primeiro passo é fazer o diagnóstico, entender como a empresa hoje é representada e, a partir disso, fazer as mudanças necessárias. Claro que a conscientização é fundamental, tem que ser constante, até porque precisamos desaprender muita coisa que a gente aprendeu. Esse tipo de conversa que vamos ter hoje é superimportante e sempre pontuo que precisam ser permanentes. Porque as pessoas precisam descontruir uma série de coisas, ler uma série de outros autores, entender de fato do que o tema se trata, sua complexidade. Quando a gente se orienta intelectualmente, consegue orientar nossas práticas. Precisamos ter práticas efetivas para um ambiente mais diverso, que reflita a sociedade brasileira, porque esses espaços ainda não refletem a sociedade como ela é de fato.
M&M – O Edu Lyra, da Gerando Falcões, anunciou a intenção de fazer a pobreza nas favelas virar peça de museu antes de Elon Musk colonizar Marte. E você esteve conversando com Preto Zezé, da Central Única das Favelas. O que estão planejando e qual a importância e potencial de ação desses movimentos?
Djamila – A Cufa e o Gerando Falcões fazem um trabalho muito importante no Brasil. O Preto Zezé eu já conheço há alguns anos e acompanho o trabalho no sentido de trazer dignidade sobretudo aos povos periféricos e de favela. Houve, agora, a campanha Mães da Favela, que eles fizeram, na pandemia, possibilitando uma série de doações a essas mulheres, porque quando fortalece as mulheres, fortalece a família e a comunidade toda. São pessoas que vêm fazendo um trabalho de fortalecimento econômico. É muito importante essa perspectiva, porque se foca muito num lugar da população negra sem pensar que sem o nosso fortalecimento econômico também não conseguimos ter acesso a uma série de questões. Eles fazerem isso com coragem de falar “sim, é preciso investir em projetos negros”, “é preciso investir na favela”, as pessoas precisam ter condições e se empoderar economicamente é fundamental. No Brasil, por muito tempo, isso foi colocado um pouco de lado numa perspectiva só assistencialista, mas não do fortalecimento, de fato, das comunidades negras. E a gente vem conversando, porque pensamos em fazer parcerias para o futuro. O Preto Zezé é presidente global da Cufa, uma organização que a gente respeita bastante, e estamos em conversas iniciais para potencializar nossos trabalhos.
Meio & Mensagem – Você é uma intelectual com projeção nacional e internacional e já fez campanha para Quem disse, Berenice?, do Grupo Boticário, e publi para a Amazon Prime Vídeo. Quais seus critérios para associar, ou não, sua imagem a uma marca?
Djamila – Faço poucas ações. Campanhas mesmo fiz para Johnnie Walker. Sou embaixadora da marca. Fiz essa ação com a Quem disse, Berenice? e faço alguns publi posts, que são uma coisa não tão associada à minha imagem. Sempre pesquiso, leio muito sobre a empresa. É importante, de fato, que estejam fazendo um trabalho para além só de me chamar para estar ali. Geralmente, as empresas com quem participo têm grupos de diversidade, líderes, as conversas já estão acontecendo dentro delas. Esse comprometimento é importante. É uma das coisas que avalio sempre antes de associar minha imagem. Por exemplo, a Johnnie Walker tem um trabalho sendo feito já há algum tempo de apoiar organizações. Na campanha que a gente fez em março, teve um apoio (financeiro, inclusive) a muitas organizações de mulheres que estão na base. Agora, tem uma campanha de sustentabilidade, da qual estou participando, e eles estão apoiando algumas startups. É muito bacana porque estão trazendo também fortalecimento econômico a essas empresas e comunicando a um público maior, para as pessoas conhecerem essas startups e esse tipo de trabalho que combate, por exemplo, o desperdício de alimentos. O critério é sempre esse: qual o trabalho que, de fato, está sendo feito e como está reverberando, sobretudo, para aquelas pessoas que já estão ali atuando nas suas organizações, cooperativas, nos seus espaços, e que tipo de apoio traz a essas iniciativas.
M&M – Seu livro mais recente, que acaba de ser lançado, Cartas para minha avó foi descrito como de memórias. Qual a importância da memória no contexto filosófico e social?
É muito importante. Muitas autoras e pensadores escreveram livros de memórias. Os livros de memórias, às vezes, têm um poder maior de tocar mais as pessoas do que um livro acadêmico. Quando a gente conta a partir das nossas experiências, as pessoas conseguem ser mais tocadas. E Cartas para minha avó, escolhi escrever em formas de cartas para minha avó Antônia, que faleceu quando eu tinha 13 anos, trazendo esse lugar do feminino como importante e o quanto a gente o desvaloriza. As pessoas falam muito do meu pai na minha trajetória. Ele foi essa pessoa que me incentivou realmente a estudar, mas nunca falam da minha mãe. Mas quem lavava meu uniforme, cozinhava, arrumava meu cabelo para eu poder ir para a escola e para os cursos? Esse lugar do feminino sempre é invisibilizado. Então, falo muito da minha mãe e da minha avó. E por mais que seja um livro de memórias traz experiências que são universais a muitas pessoas. Passa pela questão da criação de filhos antirracistas, da valorização do feminino, de discutir antirracismo, mas de uma maneira muito mais afetiva e a partir das minhas experiências.
M&M – Como você que fez esse trabalho de memória, mas tem uma filha, enxerga, então, por outro lado, o futuro, no que diz respeito à representatividade e ao respeito à diversidade no Brasil?
Djamila – O que a gente espera é que o trabalho que está sendo feito agora, de fato renda frutos para as próximas gerações. Tem uma frase que gosto muito que é “as que vieram antes, às vezes, não vivenciaram os frutos das lutas que elas construíram, mas as outras gerações, sim”. É sempre esse o pensamento. Pude vivenciar algumas melhoras, porque mulheres antes de mim fizeram essa luta. O que a gente pensa, como parte desta geração, é construir para que as próximas possam vivenciar uma realidade menos desigual. É para isso que a gente luta, dialoga e onde coloca nosso empenho de fato. É isso que a gente espera, que as próximas gerações possam colher esses frutos.
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