Qual é a sua verdade?
Sociedade em rede capilarizou acesso à informação dando a qualquer pessoa a capacidade de construir sua própria narrativa, compartilhando o que mais fala ao seu coração. Não importa que seja mentira
Sociedade em rede capilarizou acesso à informação dando a qualquer pessoa a capacidade de construir sua própria narrativa, compartilhando o que mais fala ao seu coração. Não importa que seja mentira
Após 2016, o ano que lançou a era da pós-verdade de forma definitiva no contexto político social em escala planetária, a construção de narrativas a partir de versões da realidade desconectadas de fatos passou a conviver intimamente com nosso dia a dia. O conceito de verdade nunca foi tão elástico e poroso como neste final de segunda década do século 21. A vitória do Brexit, no Reino Unido e de Donald Trump, nos EUA, são os marcos de um processo pintado com cores fortes por mentiras e falsidade políticas. Esses estratagemas não são novos e também não são o mesmo que pós-verdade. “A novidade não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, por fim, à convivência. A mentira é considerada regra, não exceção, mesmo em democracias”, diz o jornalista inglês Matthew D’Ancona no seu livro Pós-Verdade – a Nova Guerra Contra os Fatos em Tempos de Fake News.
Em 2008, o professor da Universidade de Chicago, Richard Thaler, conselheiro informal do então candidato à Presidência dos EUA, Barack Obama, e um dos expoentes da chamada economia comportamental lançou o best seller Nudge – Aprimore suas Decisões sobre Saúde, Riqueza e Felicidade. A obra, feita em coautoria com Cass Sustein, foi lançada no Brasil um ano depois pela editora Elsevier com o subtítulo O Empurrão para a Escolha Certa.
Mais do que uma introdução acessível a essa linha da teoria econômica ao traçar as duas formas de pensamento (automática e reflexiva), os autores se apresentam como arquitetos de escolhas. A saber: aqueles que têm a responsabilidade de organizar o contexto no qual as pessoas tomam decisões. Eles listam seis princípios da boa arquitetura das escolhas: estruturas complexas, entender mapeamentos, esperar erros, incentivos, opções pre-definidas e fornecer feedback. Thaler e Cass partem do princípio de que não existe neutralidade. Tudo importa. Um arquiteto de escolhas deve influenciar as pessoas a tomarem boas decisões, dando uma cutucada, uma orientação, ou, em inglês, o nudge.
Uma evolução sofisticada e complexa da simples distinção entre mentira e verdade marca o novo nudge dessa nossa sociedade hiperconectada, a pós-verdade. Ela se caracteriza pela perda do nexo e do vínculo com o real e o verdadeiro. Autoria, algo que é muito caro para nós jornalistas, não faz parte da lógica dessa nova era. A seleção da verdade é afetiva e identitária. A sociedade em rede esgarçou e capilarizou a capacidade de acesso à informação dando a qualquer pessoa a capacidade de construir sua própria narrativa, compartilhando aquilo que mais fala ao seu coração. Não importa que seja uma mentira.
Estudo de pesquisadores do MIT publicado em março pela revista Science (https://bit.ly/2D- cvbzH) comprova que a mentira se espalha mais rápido do que a verdade. As chamadas fake news são compartilhadas 70% mais do que as histórias baseadas em fatos reais. O estudo teve como base análise de mais de 80 mil notícias postadas no Twitter entre 2015 e 2016, das quais apenas 1% eram falsas. No entanto, os pesquisadores constataram que essas histórias falsas chegaram a atingir até cem mil pessoas facilmente. Por outro lado, notícias verdadeiras raramente são retuitadas por mais de mil pessoas levando cerca de seis vezes mais tempo para atingir 1,5 mil pessoas.
É louvável iniciativas de grandes grupos de mídia de implementaram serviços estruturados de fact-checking, como o projeto É Fato ou Fake, do Grupo Globo, ou o Comprova, do qual a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo é curadora. Mas, assim como todos as grandes questões contemporâneas este é um fenômeno formado por estruturas complexas. A tecnologia, o uso de dados e de bots são apenas a ponta desse processo que começa no impacto emocional que as fake news causam nas pessoas. Do mito da cebola cortada que causa infecções seríssimas à disseminação de posts indicando que as vacinas podem levar à maior incidência de crianças com Síndrome de Down — contribuindo para a formação do caldo de fatores que provocaram a menor cobertura vacional dos últimos 20 anos no Brasil —, as notícias falsas são a face visível de uma sociedade cujos valores são construídos por meio de influência e confiança.
Nesse contexto de verdades múltiplas e aparente vitória de visões de mundo simplistas e retrógradas, marcas, mídia, plataformas tecnológicas, profissionais de comunicação e a sociedade em geral entram em contato com histórias e realidades que achávamos que estavam distantes de nós, no século passado. Lidar com o contraditório, exercer o espírito crítico e desenvolver a musculatura da tolerância são habilidades que não fazem parte da nossa formação como indivíduos nem como sociedade. Uma vez que neutralidade não constrói valor nessa nova dinâmica de arquitetura das escolhas temos de ser antes de qualquer coisa responsáveis e leais a nossas próprias verdades.
*Crédito da foto no topo: Pixabay/Pexels
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