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Opinião

Vinte anos, vinte dias

Ao mesmo tempo que empresas e marcas são cobradas para tomar posições nas mais diversas questões, nunca foi tão arriscado assumir tais posicionamentos


6 de fevereiro de 2017 - 11h59

Foto: Reprodução

Protesto em Washington após a posse de Trump. Foto: Reprodução

Na quinta-feira 2 de fevereiro, o CEO do Uber Travis Kalanick oficializou a sua saída do grupo de conselheiros para assuntos relacionados à economia formado por Donald Trump. Para quem observa o imbróglio, era uma decisão aparentemente simples de ser tomada, devido à unanimidade quanto ao potencial para semear a discórdia do novo presidente norte-americano, independentemente de se concordar ou não com suas ideias.

Reportagem publicada pelo New York Times no dia seguinte do anúncio revelou que não foi tão fácil assim: Kalanick só pediu de fato o boné após dois dias de intensa pressão, dos mais diversos stakeholders da empresa. Na terça-feira, 31 de janeiro, teve início uma campanha para punir o Uber por ter promovido seus serviços como uma alternativa para a greve temporária lançada por taxistas em Nova York, em protesto contra as novas políticas imigratórias impostas pela administração Trump.

Na semana passada, sob o pretexto de proteger os Estados Unidos de terroristas islâmicos, o presidente americano decretou a suspensão do programa de recebimento de refugiados no país pelo prazo de 120 dias e o veto à entrada de cidadãos nascidos no Iraque, no Iêmen, na Síria, no Irã, no Sudão, na Líbia e na Somália por 90 dias. Mais de 200 mil usuários deletaram o aplicativo do Uber de seus smartphones.

Na quinta-feira, 1º de fevereiro, funcionários da empresa, como engenheiros e gerentes de produto, redigiram um manifesto de 25 páginas intitulado “Carta a Travis”, explicando como o engajamento do CEO do Uber com o recém-empossado governo afetava a vida deles e exigindo que o executivo revisse tal posição — o que ele realmente veio a fazer.

Marcas e empresas são presas fáceis nessa arapuca contemporânea. Ao mesmo tempo que são cobradas para tomar posições nas mais diversas questões, nunca foi tão arriscado assumir tais posicionamentos: devido à polarização radical entre os diferentes grupos da sociedade, toda atitude é enquadrada de alguma forma dentro do universo político

A reação do público e dos colaboradores da companhia mostra o quão árido é o atual território de ação das marcas. Não fosse o contexto político, a decisão do Uber de oferecer serviços mais baratos durante a greve de taxistas poderia ser vista apenas como uma estratégia alinhada com o propósito original da empresa: simplificar e melhorar a qualidade de serviços de transporte à população. Muitos dos funcionários do próprio Uber entrevistados pelo New York Times consideraram injusto o motivo do boicote popular ao aplicativo. A demonização que enfrentaram pelo simples fato de trabalharem para o Uber foi o bastante para convencê-los de que essa não era a principal variável a ser considerada no quiproquó.

Marcas e empresas são presas fáceis nessa arapuca contemporânea. Ao mesmo tempo que são cobradas para tomar posições nas mais diversas questões, nunca foi tão arriscado assumir tais posicionamentos: devido à polarização radical entre os diferentes grupos da sociedade, toda atitude é enquadrada de alguma forma dentro do universo político. Confira na página 21 como se manifestaram a respeito dos decretos de Trump 19 empresas americanas ou operando nos Estados Unidos.

A lista inclui gigantes como Coca- Cola, Apple, Nike, Ford, Google e Facebook, e faz parte do esforço de reportagem de Isabella Lessa e Luiz Gustavo Pacete, que foram além na apuração. Os jornalistas questionaram suas fontes também quanto a estruturas e conceitos de marketing e comunicação desenvolvidos e aprimorados por duas décadas, antes da ascensão dessa segunda onda antiglobalização — uma bandeira empunhada por forças de esquerda nos anos 1990 e agora alinhada com os ideais da extrema direita.

“As marcas globais deverão ter ainda mais cuidado e atenção com suas estratégias locais. As campanhas feitas nos Estados Unidos ou na Europa e distribuídas pelo mundo fazem cada vez menos sentido”, afirma o diretor-geral da Kantar Vermeer, Eduardo Tomiya. “Um lado importante desse movimento é o fortalecimento dos escritórios locais das marcas: passam a ser mais respeitados e haverá uma redução das adaptações locais.”

Enquanto você lê a ótima reportagem de Isabella e Luiz, publicada a partir da página 26, lembre-se, caro leitor: a administração Trump ainda não completou nem seus primeiros 20 dias.

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