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Meio e Mensagem – Marketing, Mídia e Comunicação

Ei, você não é todo mundo

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16 de novembro de 2020 - 8h00

Ellen Rocha

Existe uma “velha tendência” em definir tudo que não é do eixo Rio-São Paulo como o grande resto do Brasil. Como filha do menor estado do país, Sergipe, cresci vendo programas de televisão e propagandas que nunca conversaram com a minha realidade. Até as TVs e rádios locais buscavam copiar o sotaque padrão, e o caminho seguido pelas marcas era justamente esse: multiplicar o modelo que já era sucesso no eixo e que figurava como a representação fiel do país. O Nordeste ainda é visto como uma coisa só, o famoso “vocês lá de cima”. Pois trago um spoiler do passado, presente e futuro juntos: não é assim. Mesmo.

Reconheço que as tentativas de regionalização na comunicação e na publicidade são antigas: o sistema de afiliadas de emissoras nacionais como a Globo, consolidado na década de 1970, é apenas um exemplo, junto com multinacionais que se estabeleceram regionalmente em um esquema “glocal”, caracterizado por empresas globais que atuam localmente. Inclusive, nos cursos de Rádio & TV e Jornalismo das universidades sergipanas – e do Brasil todo -, éramos orientados a neutralizar os nossos sotaques para algo que seria, infelizmente falando, aceitável.

Em 2012, ano de publicação do livro “All Business Is Local”, o especialista em marketing John Quelch e a pesquisadora Katherine Jocz, da Harvard Business School, definiram a hiperlocalização e destacaram a importância de não subestimar o poder do local, trocando o foco dos negócios do global para o hiperlocal. A hiperlocalização se configura como uma estratégia de conteúdo e mídia para direcionar anúncios personalizados para o público certo, utilizando dados como localização, hábitos de consumo e observação da jornada do consumidor. Em poucas palavras, tem como objetivo vender mais.

No entanto, hiperlocalizar uma estratégia baseada em ativações e campanhas não é traduzir conteúdo de um idioma estrangeiro para o português ou substituir o “nossa, mano” pelo “oxe, minha gente”. Identificação e conexão vão muito além disso. É a escuta ativa que deve permear o trabalho de pesquisa e listening locais para entender as dores e hábitos do consumidor. E micro-comunidades são ecossistemas poderosos no processo de hiperlocalização. O desafio é gerar conteúdo humanizado e com linguagem efetiva. Afinal de contas, quem fala com todo mundo fala com ninguém.

No artigo “Governança corporativa na era digital”, publicado na revista Meio & Mensagem, Fiamma Zarife diz que “a diversidade gera inteligência coletiva”. E eu concordei tanto, que acredito que só a diversidade de dentro para fora é capaz de gerar uma hiperlocalização que não dependa somente de tecnologia, mas, acima de tudo, de gente. Com o trabalho remoto, contratar pessoas de outras regiões e montar times diversos deveria se tornar uma tendência.

É possível gerar abrangência para o negócio ao localizar marketing e operações para gerar conteúdo, valor e reputação de marca por meio de identificação e proximidade. Na 99, isso vai de espaços físicos, como as Casas 99, até escolhas de times locais de influenciadores, embaixadores e creators por equipes que estão em cidades de todas as regiões do país. Aqui, a inteligência artificial monitora conversas e histórias nas redes sociais, com uma visão clusterizada do que as pessoas estão falando, levando em consideração o momento da marca em cada lugar. Mas sabe quem interpreta e hiperlocaliza tudo isso em um conteúdo data-driven e humanizado? Gente. E falando nela, o Bradesco trouxe, em seu filme de campanha lançado em agosto, “Reinvente o Futuro”, uma locução sem os sotaques característicos da região sudeste. Há alguns anos, Ballantine’s e a agência F&Q Brasil criaram o reality show Mix It With Brasil, o qual lançava um produto hiperlocalizado e misturava escoceses de Edimburgo e Glasgow com pernambucanos de Recife e Caruaru, em uma única temporada feita exclusivamente para o público da região.

Você ousaria dizer que o hiperlocal nacionaliza a regionalização? Eu, sim. Pane no sistema? Oxe, nam! Com os efeitos da pandemia, a inversão do “glocal” para o “lobal” evidencia marcas que, mesmo buscando alcance global, se mantêm fiéis às suas raízes e valorizam características locais. Assumir as diferenças do Brasil, sem neutralizar conteúdos nacionais no regional ou ser tão específico a ponto de falar só localmente, são realidades do aqui e agora. A escolha que está em jogo é se a marca se assume como diferentes Brasis ou se o Brazil continua não conhecendo o Brasil, como já cantava Elis Regina em “Querelas do Brasil”.

Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando (ou não): por que ela trouxe um assunto que deve estar fazendo aniversário de muitos anos? É que mainha sempre me disse: “você não é todo mundo”. E eu digo mais: a sua audiência também não é.

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