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“Os papéis sociais deixam as mulheres prontas para o burnout”

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“Os papéis sociais deixam as mulheres prontas para o burnout”

Psicanalista e escritora, Elisama Santos explica como as construções da sociedade e o atual mercado de trabalho fazem com que as mulheres sejam o grupo mais prejudicado em relação à preservação da saúde mental


6 de março de 2023 - 13h54

Elisama Santos

Elisama Santos: “Vemos mulheres pouco corajosas, pois elas são incentivadas a não correr riscos”(Crédito: Divulgação)

Escritora e palestrante, a psicanalista Elisama Santos tornou-se uma das vozes mais fortes nas temáticas da inteligência emocional, comunicação não-violenta e saúde mental.

Com essa bagagem, ela não hesita em afirmar que as mulheres são o grupo que mais sofre com o esgotamento mental, resultante de uma sociedade que as educou para cuidar de tudo e de todos até o limite de suas forças. “Não existe nenhuma categoria em que a mulher não sofra opressões”, afirma à reportagem.

No âmbito corporativo, Elisama defende que o burnout e a sobrecarga deixem de ser analisados como problemas pessoais e passem a ser tratados do ponto de vista das empresas, que precisam, de forma urgente, construir culturas de trabalho menos adoecedoras.

Leia, abaixo, a entrevista com a psicanalista Elisama Santos.

Meio & Mensagem: A saúde e o mental e o burnout têm sido temas mais discutidos no ambiente corporativo nos últimos anos. Quando fazemos um recorte das mulheres nessa pauta, que diferenças é preciso estabelecer?

Elisama Santos: Não temos como pensar na solução desse problema sem contar a imensa diferença que existe, porque estamos falando da socialização. Desde muito pequenos, fomos aprendendo que, no teatro da vida, existem papeis determinados para cada um de nós, que é diferente entre homens e mulheres. O papel social que as mulheres aprendem, ainda muito novas, é o que nos deixa prontas para surtar e para ter burnout. Um papel de existir para o cuidado, para prestar atenção em tudo e todos ao redor, para não gerar incômodos e ser ‘boazinha’ para ser desejada. A mulher não existe para ser desejante, para desbravar e fazer aquilo que ela quer. Enquanto o menino ganha carrinhos, peças de Lego, a menina ganha bonecas, que carregam a mensagem ‘cuide, cuide, cuide’. Não há algo de errado, especificamente, nem no Lego nem nas bonecas, e sim nas consequências disso para a vida. Trazendo isso ao mercado de trabalho, vemos mulheres pouco corajosas, pois elas são incentivadas a não correr riscos. E dizer que algo está incomodando no trabalho é correr um risco que a mulher não quer, assim como se aventurar em novo cargo. Ela não vai se arriscar em algo, a não ser que ela tenha 100% de certeza de acerto. Então, apenas esse peso de ter de acertar sempre já é suficiente para adoecer emocionalmente.

M&M: Esse peso em executar as coisas com perfeição, portanto, é um dos fatores que leva mais às mulheres ao desgaste emocional?
Elisama: O jogo que a menina aprendeu, desde pequena, é o da perfeição. Ao brincar com o bebê, ela aprende que, se não alimentá-lo e cuidá-lo, ele morre. Aprendemos que tudo é muito determinante. Nosso valor na sociedade, como, fica pulverizado em várias coisas: no relatório entregue, na forma como se lida com os conflitos no trabalho, na camisa amarrotada do filho. O valor não está nela e sim no quanto aquilo que ela realiza é desejado e avaliado pelo outro. É o olhar do outro que nos constrói. E, no mercado de trabalho, a necessidade de ser perfeita e estar atenta a tudo gera uma carga mental totalmente exaustiva. Enquanto para um homem um erro é apenas um erro, para nós, mulheres, um erro pode representar a perda de uma oportunidade para sempre, pode significar que não somos capazes de fazer o mínimo do que esperam de nós, que é ser perfeita. Porque o mínimo que se espera de nós é muito alto. Quando se olha para o número de mulheres em posições de liderança, quando vemos uma mesa de líderes em que a maioria é homem, a pressão da mulher que está ali, sentindo que não pode errar, é imensa. Como que podemos crescer, ser corajosas e ter grandes feitos nas empresas se não podemos arriscar?

M&M: A sobrecarga mental feminina, que atribuiu às mulheres, inconscientemente, a responsabilidade de cuidar dos filhos, da família e organizar a rotina da casa, por exemplo, também está presente no ambiente corporativo?
Elisama: Totalmente. Enquanto o colega homem, que foi socializado para fazer a parte dele, e por isso, está fazendo apenas o dele, a mulher já pensou na outra colega que chegará depois e como aquela parte precisa se encaixar no trabalho dela; já pensou que aquele outro setor demora demais, então é preciso entregar com dois dias de antecedência, etc. Ou seja, não dá para ela se preocupar só com a parte dela, porque ela precisa estar de olho no todo, já que aquele resultado acabará definindo seu valor. Para um homem, é muito fácil compartimentar e fazer a parte dele. A mulher não é educada para dizer ‘eu já fiz minha parte, você não fez a sua’ porque a parte do outro sempre está ligada e ela, que foi ensinada a entregar o resultado geral, o todo. E nossa mente não é compartimentada para ter um funcionamento em casa, outro no trabalho: ele se espalha em tudo o que fazemos. Não queremos deixar o cliente, o líder, o funcionário ou colega chateado com um ‘não’, porque existe sempre a preocupação de cuidar do todo, do ambiente. Podemos dar até outros nomes a isso, como redução de danos e de riscos, mas se trata de cuidado.

A mulher não é educada para dizer ‘eu já fiz minha parte, você não fez a sua’ porque a parte do outro sempre está ligada e ela, que foi ensinada a entregar o resultado geral, o todo.

M&M: A sobrecarga mental e o burnout são têm pesos distintos para profissionais de diferentes níveis hierárquicos?
Elisama: Não existe nenhuma categoria no mercado em que a mulher não sofra opressões. A medida em que uma mulher ascende no trabalho, as demais vão ficando menos numerosas. Então, isso torna aquela mulher mais sozinha e com menos pessoas em quem confiar. Quando sei que, naquele cargo, só vai ter um mulher, tenho que lutar por ele com minha colega porque, geralmente, há diversos homens em cargos de lideranças mas poucas vagas reservadas às mulheres. Não disputamos dez vagas de lideranças porque, geralmente, oito serão ocupadas por homens enquanto uma mulher e todas as suas colegas terão de disputar duas. Outro ponto é que, quando a mulher ocupa uma posição mais elevada, todos os olhares estão atentos para apontar seus erros, não seus acertos. O acerto é só uma prova de que ela está fazendo o mínimo que deve. Já quando ela erra, é comum ouvir que ela não estava pronta. Ou seja, quem chega a um alto cargo tem um medo terrível porque, talvez, seja a única chance da vida de ocupar esse espaço. Seria fácil dizer que é só sensação e percepção, mas não é. Temos a sensação porque a realidade é assim. Vivemos em um mundo governado por homens, em que os maiores cargos são criados por homens. A mulher em um alto cargo, portanto, é hiper consciente de que o espaço dela é estreito, que a vaga é apertada e que ela está em risco.

M&M: Vemos iniciativas de empresas em prol da saúde mental dos funcionários. Em que estágio estamos em relação à conscientização sobre esse assunto?
Elisama: Estamos engatinhando. É muito legal me levar para dar uma palestra na empresa, pagar um workshop para os líderes. Mas isso não adianta nada se a cultura da empresa for fomentadora de adoecimento mental. Precisamos olhar a saúde mental não no contexto do indivíduo. Talvez aquela organização seja adoecedora e um ambiente quente para a proliferação de várias doenças mentais pela forma como a liderança encaminha os conflitos e problemas e pela cobrança que os colaboradores enfrentam diante dos erros. Saúde mental não significa oferecer meditação e terapia aos funcionários. Isso é legal, mas não é suficiente. É preciso entender qual é o custo, na saúde mental dos funcionários, para que a empresa cumpra aquela meta. É importante dizer que criar um ambiente fomentador de saúde e protetivo não é algo a ser feito porque a empresa é ‘boazinha: isso gera lucro. Dez horas de trabalho por dia de uma pessoa adoecida e sete horas de alguém saudável geram rendimentos muito diferentes. As empresas têm afastado muitos funcionários por depressão e doenças físicas que têm ligação com a emoção. Em uma equipe que não está saudável, cada cisco que cai fora do lugar gera uma briga. Se as pessoas estão infelizes, mal, se aquele ambiente provoca os piores sentimentos diariamente, o quanto a empresa gasta com isso? Aquele ambiente vai se corroendo.

M&M: Geralmente, como age uma mulher com burnout ou sobrecarregada no ambiente de trabalho?
Elisama: Existe uma construção social que faz com que essa mulher que não está dando conta ache que aquilo é um problema dela. A mulher pensa que, se não está dando conta, é porque é incompetente, porque é desequilibrada etc. A autoculpabilização é construída socialmente. Fico revoltada quando alguém diz que uma mulher é muito controladora quando, na verdade, ela aprendeu a ser assim para se proteger. Queremos controlar tudo porque nosso valor está em tudo. Se a mulher deixar de rodar os vários pratinhos e eles caírem no chão, é ela que terá de pegar a vassoura e a pá para limpar.

Fico revoltada quando alguém diz que uma mulher é muito controladora quando, na verdade, ela aprendeu a ser assim para se proteger. Queremos controlar tudo porque nosso valor está em tudo. Se a mulher deixar de rodar os vários pratinhos e eles caírem no chão, é ela que terá de pegar a vassoura e a pá para limpar.

M&M: Quais são as características principais do burnout?
Elisama: Para se perceber em um burnout há vários sinais e o sono é um dos principais. Quando a pessoa não consegue mais dormir, ou quando deita e sua mente fica girando em torno daquilo que não foi feito no dia e que precisará ser feito no dia seguinte. Entramos em um movimento de insuficiência diário e constante: a pessoa acorda achando que o dia não será suficiente para fazer tudo o que precisa fazer e dorme com a sensação de realmente não ter feito, já pensando que aquilo terá de ser resolvido amanhã. É um looping, um dia após outro. Outro ponto é observar o que o corpo diz: como temos comido? Quantas dores sentimos? Quantas vezes na semana precisamos tomar um analgésico para não sentir dor de cabeça e para dar conta do dia? Quantas vezes falamos que está tudo bem, mas os músculos dos ombros estão tensionados e as costas doloridas? Esses são sinais de que está pesado, que está demais, e que estamos perto de um ponto do qual, talvez, seja muito difícil sair. E, no burnout, vamos chegando a um ponto de esgotamento em que não conseguimos mais dar conta das atividades que fazíamos naturalmente. Qualquer escolha, seja a da roupa que iremos vestir, se torna pesada demais. E viemos de um momento em que o cansaço é glamourizado. Estar exausto virou um valor moral, pois parece sinalizar que aquela pessoa é competente, incrível. Chegamos no ápice disso há alguns anos e agora começamos a perceber que, desse ápice, só caímos. É insustentável achar que o cansaço é maravilhoso. É insustentável dizer que é normal trabalhar 15 horas por dia. Estamos começando a descer agora dessa montanha russa que nos fizeram subir e acreditar que era normal ser assim.

M&M: Quais são os caminhos para uma pessoa sair dessa situação de burnout e mudar sua relação no ambiente de trabalho?
Elisama: Sempre trabalho com a premissa de que o ‘eu não dou conta’, significa, na verdade, ‘eu não tenho apoio suficiente’. Não se trata mais de algo individual e sim do coletivo. Como que a empresa apoia para que a pessoa consiga entregar essa meta? Mas ai, voltamos ao ponto de que a mulher, como não foi treinada para arriscar, ela vai achar que se ela pedir apoio à empresa, poderão achar que ela é incompetente. Então, ela vai se virar sozinha. A solução para isso tem que partir da empresa, primeiramente, na construção de um ambiente seguro, reconhecendo quais são as atitudes adoecedoras. E isso só se descobre escutando as pessoas. Não é o líder, que está sentado em sua sala no ar condicionado, tomando decisões com base em livros escritos por outros homens brancos, que saberá como é o mundo. De que fontes os líderes têm procurado conhecimento para construir um ambiente saudável? Não adianta ter muitas mulheres em uma empresa, mas ouvir apenas os homens na tomada de decisão de como construir um ambiente saudável. Não adianta falar com um espelho. Sem isso, sem diversidade de pontos de vista, não haverá transformação. É preciso ouvir mulheres de várias faixas etárias, de várias raças, porque não há uma mulher, universal. Se pensarmos que um ponto de vista é a vista de um ponto, quanto mais vistas eu chamo para falarem de seus pontos, mais bonito e abrangente vai ser o ambiente que será criado. A empresa também precisa entender que, como a mulher não foi treinada para expor o incômodo, muitas vezes será preciso perguntar. E, do ponto de vista das mulheres, é preciso admitir que não dar conta das coisas significa falta de apoio e não incompetência pessoal. Elas precisam entender que limite é proteção e cuidado. Quando ela coloca limite, ela protege o que importante para ela. Temos que abandonar a expectativa de sermos boas meninas.

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