Como a economia do cuidado impacta as mulheres e empresas?

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Como a economia do cuidado impacta as mulheres e empresas?

Desigualdades salariais, burnout, falta de oportunidades de ascensão e aumento do turnover são apenas algumas das consequências  


16 de fevereiro de 2024 - 16h49

Todos os dias, mulheres e meninas do mundo todo dedicam 12,5 bilhões de horas em trabalhos de cuidados não remunerados. Isso representa uma contribuição total de US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, segundo o relatório da Oxfam. No Brasil, o trabalho de cuidado equivale a 13% do PIB, de acordo com uma pesquisa da FGV, sendo 65% realizado por mulheres. 

São elas que proporcionam a base do funcionamento social. Sem essas mulheres, quem cuidaria do desenvolvimento, educação, saúde e higiene das casas, filhos e familiares? No final, a conta pesa para o lado dessas cuidadoras — em média, elas dedicam mais de 21 horas por semana em trabalhos de cuidados não remunerados, enquanto os homens dedicam 11 horas, segundo a FGV.  

Na verdade, toda essa carga tem um custo. Não somente um prejuízo para a vida pessoal e profissional delas, mas também implicações para as crianças, os homens, as empresas e a sociedade.  

Impactos na carreira feminina 

A primeira consequência é o aumento dos níveis de estresse e burnout entre as mulheres. A pesquisa da Think Olga constatou que entre as entrevistadas, 45% enfrentavam algum transtorno mental, com maior prevalência de depressão e ansiedade. “Se não houver um ambiente que compreenda e apoie as mulheres nesse dilema de maneira saudável, a intensidade do estresse resultante pode levá-las a deixar o trabalho, ou até mesmo enfrentar situações de burnout e estresse extremo”, analisa Mariana Talarico, diretora de desenvolvimento organizacional, cultura e bem-estar Latam na Natura. 

Nos últimos anos, a discussão da saúde mental no ambiente corporativo se intensificou. “Durante a pandemia, de maneira geral, não apenas na Natura, as mulheres foram as principais responsáveis por abrir mão do trabalho para se dedicar aos cuidados dos filhos e da casa”, diz Mariana. Consequentemente, elas pagaram o preço. “Ficou claro que as mulheres foram mais penalizadas do que os homens nesse cenário”, reforça a diretora de RH do Grupo Reckitt, Flávia Lisboa Porto.  

Mariana Talarico, diretora de desenvolvimento organizacional, cultura e bem-estar Latam na Natura (Crédito: Divulgação)

Além do prejuízo mental, esta sobrecarga impacta também a progressão de carreira destas mulheres. Segundo o IBGE, a diferença salarial entre homens e mulheres no Brasil atingiu 22% em 2022 — o que significa que, em média, uma brasileira recebe 78% do que ganha um homem. “As mulheres que cuidam de outros frequentemente precisam contar com uma rede de apoio, remunerando alguém para cuidar quando estão ausentes para cumprir suas obrigações profissionais”, relata Flavia Porto. 

Essa diferença salarial impacta também nas possibilidades de desenvolvimento profissional. “Muitas vezes, as mulheres priorizam o cuidado dos outros antes de investir em sua própria qualificação”, afirma Flavia. “As mulheres que estão inseridas na economia do cuidado, remuneradas ou não, muitas vezes enfrefntam restrições no acesso ao desenvolvimento educacional de qualidade e sustentável”, continua. Logo, quanto mais baixo o nível hierárquico, menos oportunidades essa mulher terá para pagar por uma rede de cuidado ou investir em seu desenvolvimento profissional. 

Flávia Lisboa Porto, diretora de RH do Grupo Reckitt (Crédito: Divulgação)

Além disso, existe toda uma cultura corporativa que premia a dedicação e disponibilidade em detrimento da entrega efetiva de resultados. “Esse cenário fica evidente nas grandes empresas, onde os feedbacks muitas vezes sugerem uma entrega menor por parte das mulheres”, diz Camila Lourençato, advogada e sócia-diretora da Irmanas, assessoria de relações interpessoais nas empresas. “Essa redução na entrega é frequentemente justificada pelo fato de serem mães”, continua. De acordo com ela, são essas inferências baseadas em vieses preconceituosos que tolhem o desenvolvimento e a ascensão profissional das mulheres.  

Em menor escala, até mesmo os homens são prejudicados neste contexto, dispondo de apenas 5 dias de licença. Tempo curto demais para desenvolver uma paternidade ativa nos primeiros meses de vida. “Ao construir uma cultura baseada na ideia de que as mulheres devem cuidar de todos, também privamos os homens do direito de exercer a parentalidade, enfrentando julgamentos e culpas”, avalia Flávia Porto.  

Camila Lourençato, advogada e sócia diretora da Irmanas (Crédito: Divulgação)

Mesmo frente a tantos desafios, existem executivas que usam seus espaços conquistados para promover discussões do tipo. A própria diretora da Reckitt é um exemplo. “Acredito que minha trajetória é uma prova viva de que é possível para uma mulher seguir uma carreira executiva sem abrir mão da maternidade, contanto que haja recursos e redes de apoio para viabilizar essa conciliação”, diz Flávia. 

Quem você paga para cuidar? 

A questão principal, segundo as entrevistadas, é a importância de promover ambientes que forneçam recursos para que essas mulheres possam equilibrar as diferentes funções que exercem. Mas a realidade que vivemos, entretanto, reforça as disparidades salariais entre homens e mulheres. Impedindo, muitas vezes, que essas mulheres possam pagar alguém para auxiliá-las com os trabalhos de cuidados. 

Ademais, é preciso adicionar o recorte de raça nesta discussão, uma vez que grande parte das pessoas pagas para exercerem esses cuidados são mulheres negras. “Isso contribui para a criação de desigualdades raciais, pois as mulheres brancas, ao buscarem emancipação no mundo corporativo, muitas vezes dependem dos recursos fornecidos por profissionais negras”, destaca Flavia. “Essa dinâmica cria um ciclo vicioso que não apenas perpetua as desigualdades de gênero, mas também as raciais, impactando a economia de maneira não quantificada e pouco reinvestida na sociedade”, continua. 

Carine Roos, CEO e fundadora da Newa (Crédito: Paulo Liebert)

“Essa dinâmica reflete-se na pirâmide do mercado de trabalho, com homens brancos no topo, seguidos por mulheres brancas em cargos mais gerenciais, e, predominantemente, mulheres negras na base da força de trabalho”, avalia Carine Roos, fundadora e CEO da Newa, consultoria de impacto social para organizações. 

Prejuízos sociais e empresariais 

“É inegável que a presença de uma pessoa com problemas de saúde impacta o ambiente de trabalho, prejudicando as entregas da equipe, a motivação e o engajamento”, diz Mariana Talarico. Se enfrentamos uma realidade na qual as mulheres vivem estressadas pela sobrecarga de funções, propensas a desenvolver transtornos mentais e estafa, esse estado mental reflete diretamente no ambiente em que elas trabalham. Desde 2022, a síndrome de burnout é classificada como uma doença ocupacional, ou seja, ocasionada pelo excesso de trabalho.  

Neste caso, se uma colaboradora é afastada por burnout, a empresa é responsável pelo seu adoecimento. “O impacto disso vai além do simples afastamento de um colaborador. O empregador perde um membro valioso da equipe, e os colegas encaram o afastamento como um sinal de que algo está errado no ambiente de trabalho”, reflete Camila. 

“Lidando com múltiplos turnos de trabalho, muitas vezes sem remuneração adequada, em que condições elas conseguem entregar seu melhor desempenho?”, provoca a diretora da Reckitt. Neste sentido, as empresas perdem o potencial criativo que esses talentos poderiam entregar, ou pior, perdem o talento pelo turnover.  

“Empresas que negligenciam o cuidado com a saúde mental de seus funcionários, criando ambientes tóxicos, experimentam uma rotatividade significativa. Isso resulta em uma entrega menor, produtividade reduzida e, consequentemente, menor lucratividade, gerando um alto custo para o empregador”, afirma Lourençato. 

Um ambiente que não apoia as mulheres e não promove a diversidade fatalmente enfrentará um problema de baixo engajamento e produtividade, aponta Carine Roos: “Ao analisar as motivações das mulheres para ascenderem na carreira, identificamos que o reconhecimento desempenha um papel crucial. Não apenas aquele do trabalho, mas também a percepção de que a empresa apoia e se importa com as mulheres. No entanto, a realidade das empresas mostra que muitas mulheres enfrentam microagressões, relacionadas a vieses de gênero, raça e outros marcadores, resultando em desmotivação”. 

A falta de representatividade feminina e negra numa empresa também é capaz de reforçar miopias sobre o comportamento das consumidoras, o que, por sua vez, impacta diretamente sua capacidade de venda. “Quando não proporcionamos um ambiente favorável para o crescimento das mulheres e para que suas vozes sejam ouvidas, perdemos a oportunidade de aprender com elas. Isso inclui entender como pensam nossos clientes, que são predominantemente mulheres, e como percebem nossos produtos e serviços”, avalia Flávia. 

Para além do espaço corporativo, a economia do cuidado tem efeitos no desenvolvimento social de toda uma nação. “Estudos demonstram que crianças que crescem em ambientes equilibrados, com a presença de pais e mães, ou cuidadores de maneira geral, têm melhores acessos à educação, oportunidades e estão menos propensas a enfrentar violência ou outros riscos no futuro”, destaca Flávia. “Logo, quando a sociedade e as organizações adotam práticas de equidade, estão investindo no desenvolvimento de futuros consumidores, clientes e funcionários, e promovendo uma visão de longo prazo e sustentabilidade.”

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