Imaginação, diversidade e futuro com Grazi Mendes
A head de Diversidade, Equidade e Inclusão da ThoughtWorks fala sobre a importância de usar a imaginação como ferramenta de planejamento para projetar caminhos desejados
Imaginação, diversidade e futuro com Grazi Mendes
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Lidia Capitani
13 de novembro de 2023 - 8h40
Grazi Mendes é uma líder visionária. Filha de empregada doméstica, foi a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Hoje, é head de Diversidade, Equidade e Inclusão para a América Latina na ThoughtWorks, consultoria global de tecnologia. Sua dedicação à promoção de uma sociedade mais plural transcende o ambiente profissional: ela é também conselheira e cofundadora do cursinho popular “Voa Papagaio”, na comunidade do Morro do Papagaio, periferia de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Nesta entrevista, exploramos os insights, desafios e conquistas que moldaram a carreira de Grazi, bem como suas perspectivas sobre liderança, diversidade, tecnologia e a importância da imaginação para a construção de um futuro mais igualitário e inovador.
Conte um pouco sobre sua trajetória profissional.
Atualmente, desempenho o papel de executiva em uma consultoria global de tecnologia, a ThoughtWorks, com foco na América Latina, supervisionando operações em três países: Brasil, Chile e Equador. Meu trabalho concentra-se principalmente em práticas voltadas para questões políticas conectadas a diversidade, equidade e inclusão.
Minha jornada profissional abrange aproximadamente 23 anos. Comecei na área de marketing. Ao longo do tempo, passei por setores diversos, incluindo telecomunicações, educação e startups, onde empreendi por dois anos antes de me integrar à TW. Essa jornada diversificada atravessou diferentes segmentos e indústrias, mas sempre mantendo uma conexão entre tecnologia, comportamento e visões futuras.
Onde essa mistura eclética tem suas raízes? Vem das minhas próprias identidades. Sou nascida e criada na periferia de Belo Horizonte, filha de uma empregada doméstica, a Fatinha, e de Seu Aderico, que trabalhava como vigia. Eles enfrentavam desafios financeiros, mas sempre incentivavam meu desejo de estudar. Sou a primeira da família a ingressar na universidade, uma mulher negra de primeira geração, enfrentando a raridade de representação em todos os espaços que percorri ao longo da minha trajetória.
Como seus pais te incentivaram a seguir estudando?
Na minha infância, enfrentei uma verdadeira luta pela sobrevivência. Meus pais trabalhavam incansavelmente, deixando minha irmã de sete anos responsável por mim, com apenas quatro, e pelo meu irmão, de dois, ao longo de todo o dia. Uma vizinha cuidava de nós até ela retornar da escola, e então minha irmã compartilhava conosco tudo o que aprendia. Era minha professora informal.
Foi nesse contexto que, aos quatro anos, aprendi a ler. Assim, a leitura se tornou um refúgio essencial em uma infância marcada por dificuldades, incluindo a escassez de alimentos. Essa relação precoce e apaixonada pela leitura moldou minha imaginação desde cedo. Mesmo diante das dificuldades, minha capacidade imaginativa sempre foi uma aliada, ajudando-me a projetar um futuro melhor. Essa inclinação para a imaginação e projeção de realidades mais positivas foi um fio condutor ao longo da minha vida.
Você participou da iniciativa Conselheira 101. Como foi para você essa formação e o início dessa jornada como conselheira?
Devido à minha história de vida, sempre desempenhei múltiplos papéis profissionais. Desde 2006, atuo como professora universitária, executiva e ativista. Conforme minha carreira progredia, comecei a ser frequentemente convidada para participar de conselhos. No entanto, sendo uma estudiosa, me vi diante de um desafio, pois ser conselheira não é simplesmente uma etapa de carreira. É uma posição que carrega uma responsabilidade significativa.
Percebi a necessidade de compreender a dinâmica dessa função e, por isso, fui convidada pela Fundação Dom Cabral para participar do curso de conselheiras. Buscando um contraste, observei que, na Fundação, a maioria dos alunos era composta por homens brancos, acima de 50 anos, sendo eu e outro rapaz as únicas pessoas negras. Esse ambiente homogêneo limitava as discussões, pois todos compartilhavam uma visão semelhante. Isso contrastava com a terceira turma do Conselheiro 101, na qual eu também participei. Essa turma era diversificada, com diferentes perspectivas e uma variedade de participantes.
Ao concluir as duas formações, percebi a diferença marcante entre as duas turmas, evidenciada pelas fotos, onde a turma da Fundação exibia uma paleta uniforme, enquanto a turma do Conselheiras era um “pantone inteiro” de diversidade, com cabelos coloridos e uma atmosfera mais vibrante. Essas formações me deram uma compreensão mais profunda das responsabilidades e do papel de uma conselheira. Atualmente, continuo envolvida em conselhos consultivos e atuo como advisor, priorizando startups e empresas voltadas para o impacto social.
Você também criou um cursinho preparatório para o Enem no Morro do Papagaio, na periferia de Belo Horizonte. O que te motivou a desenvolver essa iniciativa? Qual é o seu propósito com ela?
A motivação principal por trás desse projeto é o impacto transformador que a educação teve em minha vida e na história da minha família. Ingressar na universidade representou uma reviravolta crucial, especialmente considerando as profissões hereditárias no Brasil, onde a filha da empregada doméstica muitas vezes segue os mesmos passos. A universidade abriu para mim horizontes de sonhos mais amplos, possibilitando que eu fosse quem quisesse ser.
Apesar de sempre ter sido uma estudiosa, a ideia de entrar na universidade não fazia parte dos meus planos iniciais. Um ponto de inflexão ocorreu quando uma pessoa de realidade muito diferente da minha ofereceu-me uma bolsa de estudos para cursinho, insistindo que eu tinha potencial para estar na universidade.
Já adulta, minha casa também se tornou um local frequentado por professores, e surgiu a ideia, proposta pelo Bruno, meu marido, de formar um coletivo para entender as necessidades da comunidade do Morro do Papagaio. Ao conhecer de perto a realidade do morro, identificamos a carência de ensino médio, e decidimos iniciar o projeto focando na preparação para o Enem. No primeiro ano, já alcançamos sucesso ao garantir a entrada de muitos estudantes nas universidades federais.
Contudo, envolver-se em um projeto como esse não significa apenas abordar conteúdos acadêmicos. Aprendemos que precisávamos lidar com outras questões, como a falta de alimentação das pessoas. Introduzimos lanches desde o início, e começamos a abordar questões de violência doméstica, buscando empoderar as mulheres da comunidade.
Para mim, o cursinho não é apenas um local de transmissão de conhecimento, mas uma maneira de permanecer conectada às minhas origens e ao compromisso de ampliar o acesso à educação. Refletindo sobre minha própria jornada, percebo que passei por algumas frestas, e minha missão agora é abrir a porta da frente para muitas outras pessoas.
Como você descreveria seu estilo de liderança?
Considero-me uma sonhadora, ou como Ariano Suassuna diria, uma “realista esperançosa”. Adoto esse estilo em todas as equipes que lidero ou projetos em que me envolvo. Ao formar um time, inicio sempre a partir da perspectiva do que sonhamos para a missão em questão. Embora tenhamos tarefas e objetivos específicos, é essencial considerar a história que desejamos contar daqui a seis meses ou um ano. E isso não apenas para alcançar os resultados do negócio, mas também para atender às aspirações pessoais dos envolvidos.
Uso o sonho como uma tecnologia de planejamento, permitindo-nos projetar os destinos desejados. Minha abordagem de liderança visa tornar-me cada vez mais importante e, ao mesmo tempo, desnecessária. Isso impulsiona meu desejo de abrir espaços para o crescimento e autonomia das pessoas ao meu redor. Acredito que uma liderança eficaz é aquela que não atrapalha as pessoas, mas, sim, que as apoia. Meu sucesso é o sucesso da equipe, e encorajo a autonomia e o desenvolvimento pessoal, sempre buscando a excelência. Valorizo mais a jornada e as pessoas envolvidas do que apenas o resultado final.
Hoje, evito o estilo de liderança que exige sacrifícios pessoais excessivos. Busco equilibrar a gestão de resultados com o cuidado e o bem-estar das pessoas. Acredito que resultados duradouros vêm com o cuidado adequado das pessoas envolvidas.
Você fala muito sobre a importância da imaginação para a construção do futuro, e até para a inovação. Poderia elaborar mais esta ideia?
Durante meu mestrado em design de futuros, tive contato com conceitos como a imaginação radical, que envolve olhar para questões não a partir do que está imposto, mas do desejável e possível, algo intimamente ligado à capacidade de nutrir a imaginação. Essa capacidade está intrinsecamente conectada à diversidade, equidade e inclusão, pois uma imaginação enriquecida demanda um repertório plural.
Refletindo sobre minha própria história, sempre fui apaixonada por ficção científica. Mas a ficção científica ocidental, por muito tempo, foi permeada por distopias, o que influencia negativamente nosso imaginário coletivo e nos impede de considerar alternativas mais otimistas, como o potencial positivo da inteligência artificial para melhorar a qualidade de vida ao invés de gerar desemprego estrutural, por exemplo.
Em um artigo para a revista do MIT, questionei: “E se a imaginação for uma tecnologia?”. Estudos indicam que nossa capacidade de imaginação está diminuindo, o que impacta diretamente a criação de futuros desejáveis. Se não conseguirmos imaginar, nosso horizonte de possibilidades se estreita, refletindo-se nas decisões que tomamos no presente. Esse fenômeno se estende aos negócios, onde a pressão por resultados de curto prazo muitas vezes leva a decisões prejudiciais no longo prazo.
Parafraseando um provérbio africano, “quem planta uma árvore não viveu em vão”. Contudo, essa ação só é possível se conseguirmos imaginar o futuro frondoso daquilo que hoje é apenas uma semente. A frase “o presente cria o futuro” é válida, mas, na realidade, é o futuro que cria o futuro, pois nossa capacidade de imaginação influencia diretamente as ações no presente.
Quais são os desafios de gerir diversidade e inclusão na área da tecnologia?
Um dos desafios centrais enfrentados pela empresa, que está presente em 18 países, reside na gestão das diferentes realidades presentes nesses territórios, em que as questões de raça, por exemplo, são distintas em locais como Brasil, China e Índia. A necessidade de pensar globalmente enquanto se mantém um olhar atento às peculiaridades de cada região é um desafio constante.
Outra dificuldade surge na área tecnológica, caracterizada por uma evolução acelerada. A demanda por profissionais experientes e sêniores contrasta com a formação limitada de pessoas diversas nesse campo. A busca pela diversidade não deve ser meramente simbólica, pois a hiper ou sub-representação de grupos pode intensificar os vieses presentes na construção de soluções tecnológicas.
Para superar esse desafio, é necessário um esforço conjunto que envolva a promoção de oportunidades para grupos sub-representados na tecnologia. A empresa adota uma abordagem que envolve os “três R’s”: Recrutar, Reconhecer e Representar. Isso implica não apenas na contratação diversificada, mas também no reconhecimento e no crescimento contínuo desses profissionais, criando um ambiente inclusivo. Além disso, este desafio inclui a formação de lideranças e a garantia de que as decisões estratégicas incluam uma perspectiva diversificada.
No contexto de demissões na indústria de tecnologia, a empresa foi capaz de manter seus objetivos de diversidade, evitando impactos desproporcionais sobre grupos específicos. A busca pela diversidade não é apenas uma medida pontual, mas uma premissa permanente e estratégica, integrada à governança da empresa.
Por fim, quais livros, filmes ou séries você indica?
Eu indico o livro “Como Ser Um Bom Ancestral”, de Roman Krznaric, porque ele estabelece uma conexão muito relevante com a construção dessa liderança orientada para o mindset de legado. Essa abordagem visa criar coisas que, mesmo que eu não usufrua pessoalmente, contribuirão para a construção de uma sociedade melhor.
Há outro livro crucial que eu recomendo, “O Racismo Estrutural”, escrito por um grande amigo e mentor de carreira, Silvio Almeida, que desempenha um papel fundamental na minha formação. Além disso, sugiro a leitura do “Futuro Ancestral”, de Ailton Krenak, uma obra recente que também considero valiosa.
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