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Opinião

Sobre batatas de sofá e o culto a performance

Pode parecer um clichê, mas o esporte mudou o estilo de vida de muita gente. E, se prepare: vai mudar seu dia-a-dia também


24 de maio de 2017 - 8h04

Nizan na Meia de Amsterdam em 2015 (crédito: reprodução)

No começo de 2017, Nizan Guanaes festejou seu retorno à DM9DDB com a hashtag #tudodenovo, realizando diversas transmissões ao vivo pelo Instagram e pelo Facebook. Em meio a toda exposição, Nizan começou seu dia como grande parte dos executivos modernos: com um bom café da manhã e um puxado treino no parque. Pode parecer um clichezão daqueles, mas a corrida mudou o estilo de vida do publicitário.

Em outubro de 2015, Nizan correu a Meia Maratona de Amsterdam (21 quilômetros), com o tempo de 2h54minutos. À época, em sua coluna na Folha de S. Paulo, ele afirmou que a corrida acabava “puxando a vida toda em direção a uma alimentação mais saudável, um sono mais profundo, uma vida com mais disciplina e com mais foco”.

Afirmava que não havia só uma revolução tecnológica em curso: “há uma revolução humana. Na alimentação, no cuidado com o sono, no controle da mente, da alma, das emoções”. Agora, Nizan trabalha com outro objetivo: “completar um Ironman em menos de um ano”. [nota: temos dois tipos de Ironman: um com 3,8 km de natação, 180 km de bike e 42 km de corrida e outro, chamado 70.3, que conta com 1,9 km de natação, 90 km de ciclismo e mais 21 km de corrida].

E aposto que você já percebeu essa “revolução humana” na sua empresa. O número de atletas (com ou sem aspas) cresceu assustadoramente nos últimos anos. O número de altos executivos que treina forte para alguma modalidade aumentou de forma exponencial também. Deixou de ser formado apenas pelos peladeiros do futebolzinho semanal e passou a ser composto por dezenas de corredores de rua, nadadores, ciclistas, triatletas – “homens de ferro” que percorrem 10, 15, 30, 50 quilômetros a cada final de semana. E você se pergunta: “pra que tudo isso mesmo?”.

É, amigo. As coisas mudaram. Mas não é de hoje. O sociólogo francês Alain Ehrenberg trata do “culto da performance” desde a década de 1980, quase que antecipando uma tendência que vimos explodir nos últimos anos. Este conceito reflete sobre a dinâmica e importância da performance no âmbito esportivo, ligando o dia-a-dia dos treinos a um sistema de gerenciamento de si, apontando influências deste “culto” na vida profissional (e pessoal). Entre vários questionamentos, um nos deixa mais curioso: o peso dos quilos é inversamente proporcional ao lugar que se pode ocupar na hierarquia de uma empresa?.

Ironman 70.3 tem 1,9 km de natação, 90 km de ciclismo e mais 21 km de corrida (crédito: divulgação)

A resposta é tão complexa quanto a pergunta. Não é apenas um exercício físico: a “cultura do heroísmo” se torna um estilo de vida, um estado de espírito, que afeta a significação do esporte no relacionamento do participante com a sociedade. Nesse sentido, o esporte se transforma num modelo de conduta que certamente provocará – ou tentará provocar – uma mudança na forma de trabalhar. Se preocupar com bons sapatos (e bons charutos) ou saber de cor os lançamentos exclusivos de tênis para a Maratona de Boston do último ano?

Neste novo cenário, fumantes e sedentários, os chamados “batatas de sofá” (“couch potatoes”, expressão utilizada pelos autores Edgley & Brisset), são muitas vezes reconhecidos como uma classe inferior de pessoas. São inaptos, preguiçosos, ineficientes e sem disciplina. Seu chefe contrataria um profissional desses? Mas pensar nesta conduta atlética como parte do processo de contratação é realmente justo? É eficiente?

Por outro lado…
A Running USA, uma espécie de associação dos organizadores de prova dos Estados Unidos, acaba de publicar mais uma parte do seu estudo anual sobre as corridas de rua. Segundo a entidade, os Estados Unidos receberam nada menos do que 30 mil provas em 2016 (você não leu errado: foram TRINTA MIL provas), sendo mais de 17 mil delas com percursos de 5 km. Um absurdo se comparado ao Brasil, que sequer possui números oficiais da quantidade de eventos. No total, foram quase 17 milhões de finishers nas provas norte-americanas em 2016.

Outro número avaliza o crescimento do esporte: 386 mil pessoas se registraram para conseguir um lugar na Maratona de Londres de 2018 – são apenas 40 mil vagas. É o maior número de candidatos por vaga que uma maratona já teve na história. A London Marathon é uma das principais provas do mundo e faz parte das majors, circuito de maratonas que conta com patrocínio da farmacêutica Abott e corridas também em Chicago, Boston, Nova York, Berlim e Tóquio.

Em contrapartida, vivemos uma epidemia de sedentarismo: um estudo realizado pelo IBGE, em parceria com o Ministério do Esporte, e divulgado na semana passada, mostrou que o número de sedentários no Brasil corresponde a exorbitantes 62% entre pessoas com 15 anos ou mais. Mais de 100 milhões de brasileiros não praticaram nenhuma atividade física entre setembro de 2014 e setembro de 2015 .

O Circuito das Estações, em São Paulo, reúne entre 10 e 15 mil pessoas a cada etapa (crédito: divulgação)

Enquanto tentamos completar aqueles 5 ou 10 quilômetros de uma prova ou outra, seu diretor já está inscrito para um próximo triathlon ou foi sorteado para a Maratona de Nova York deste ano, que acontece dia 5 de novembro. O treino dele é específico, regrado. O cara acorda às 5h15, ingere seus suplementos, segue a planilha passada pelo treinador e às 9h30 já está em reunião, te pilhando. Alguma coincidência com o mundo real? Planilhas? KPIs? Geração de leads?
É, e se prepare: vai piorar.

Colaborou Camila Figueiredo

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