Conversa de bêbado

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Opinião

Conversa de bêbado

Existe uma grande diferença entre o comportamento das pessoas online e na vida real


8 de maio de 2018 - 17h33

Há alguns meses a marca Dove, da Unilever, publicou em sua página no Facebook uma peça em que uma mulher negra tirava uma camiseta marrom e se transformava em uma mulher branca. A internet veio abaixo. Milhares de pessoas juraram nunca mais comprar nada que tivesse o nome Dove, indignadas com o que consideraram ser um absurdo racista. A multinacional rapidamente tirou a campanha do ar e pediu desculpas. O boicote que os internautas lançaram à época da campanha provocou queda na performance de vendas da marca? Dove pode até ter sofrido sérios arranhões, mas não foram suficientes para derrubar as vendas. Elas subiram, mundialmente, 6% em volume de acordo com o relatório global da Unilever de 2017.

Existe uma grande diferença entre o comportamento das pessoas online e na vida real. O caso Dove é apenas um exemplo da distância entre o que as pessoas dizem no calor de um momento online e como elas atuam offline. Há outros exemplos: o já lendário boicote à rede Globo (e mesmo assim a novela O Outro Lado do Paraíso está perto de superar a audiência de Avenida Brasil), a ira contra a Coca-Cola e o McDonald’s, etc…. Há, claro, boicotes que funcionam. A JBS que o diga. Mas, nesse caso específico, há outros fatores que também influenciaram a queda de 30% reportada pela empresa no mercado doméstico em seu último relatório e não apenas a reação nas redes sociais.

Não estou dizendo aqui que comentários e campanhas online são inócuos. De maneira alguma. Mas não podemos continuar crendo que as mídias sociais nos dão ingredientes suficientes e exatos para medir o comportamento e o sentimento do consumidor. O que uma pessoa diz online pode ser completamente diferente do que ela faz na vida real. E isso acontece com frequência, segundo um estudo da Engagement Labs, uma empresa canadense que analisa conversas (online e offline) sobre marcas.

Hoje, por exemplo, quase seis meses depois, a linha Dove parece continuar vendendo como se nada tivesse acontecido. Pouca gente se lembra da desastrosa campanha da marca no supermercado, quando escolhe seus sabonetes ou xampus. Isso porque as redes sociais são uma terra de extremos. Os posts e os comentários mais negativos e mais extremistas são sempre os que mais viralizam. Muitas vezes, o internauta publica algo polêmico — como a adesão a um boicote — não apenas porque está revoltado com a atitude de uma empresa, mas também para chamar a atenção dos amigos, para ganhar curtidas, para parecer moderno, engajado e atualizado.

Adoramos comentar e ter posições extremas na internet porque ela nos deixa desinibidos, diz a americana Sherry Turkle, professora de estudos sociais da ciência e tecnologia no Massachusetts Institute of Technology, o MIT. Não precisamos olhar nos olhos das pessoas enquanto escrevemos que a marca tal não presta ou que fulano é idiota. Essa falta de preocupação com a reação do outro, segundo a especialista, tende a desumanizar as relações online. E é daí que surgem os grandes absurdos propagados pelas redes.

Outro estudo, feito em conjunto pela Universidade de Columbia e pela Universidade de Pittsburgh, nos EUA, mostra que nosso autocontrole tende a ficar mais mole quando usamos o Facebook. Como um bêbado rodeado de amigos numa festa. Keith Wilcox, professor na Columbia Business School e um dos autores do estudo explica: “A maioria de nós apresenta, nas redes sociais, uma versão melhorada do que realmente somos: publicamos só as fotos em que saímos bem e compartilhamos somente os momentos felizes. Essa imagem positiva é reforçada por nossos amigos online em forma das curtidas que tanto almejamos. Isso vai inflando nosso ego. E quando nossa autoestima está nas alturas, consequentemente nosso autocontrole enfraquece.”

Isso tudo — assuntos polêmicos, desinibição, autoestima reforçada, pouco autocontrole — soa familiar? Sim: são exatamente esses os efeitos que o álcool causa nas pessoas. Então, muita calma na hora de achar que as redes sociais são um raio X exato do que acontece nas casas, nas ruas, nos supermercados. Claro, o tal “big data” é fundamental (a captura, análise e catalogação de informações originadas de redes sociais, dispositivos eletrônicos, etc..). Mas é preciso saber interpretar os dados. E, o mais importante: ter entendimento profundo do comportamento humano e conhecimento científico sobre as emoções, desejos e medos que afligem o consumidor.

A internet é sim uma fonte inesgotável de valiosos recursos. Mas no meio deles há também muita conversa de bêbado, por assim dizer. Se você não confia nem a chave do seu carro a um bêbado, porque depositaria nele as decisões de sua marca?

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