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Kodak ensinando Scorsese a filmar. Só que não

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17 a 21 de junho de 2024 | Cannes - França
Diário de Cannes

Kodak ensinando Scorsese a filmar. Só que não

Apesar de apreciar a mordacidade do comentário de Nick Law, humildemente discordo. A comparação é simplista e equivocada


18 de junho de 2019 - 12h44

Nick Law, CCO do Grupo Publicis, está incomodado que as empresas de tecnologia estão contratando criativos e querendo ensinar os criativos de agências a usar de forma mais interessante e eficiente as plataformas. Ele acha que deveria ser o contrário, que as agências deveriam estar criando uma nova gramática e ensinando as empresas de tecnologia como explorar suas próprias plataformas.

“É como se a Kodak quisesse ensinar o Scorsese a filmar’, ele disse.

Apesar de apreciar a mordacidade do comentário, humildemente discordo. A comparação é simplista e equivocada. Como membro dos criativos que foram para big tech, digo porquê.

1.Google e Kodak, coisas diferentes.

As empresas de tecnologia hoje não criam produtos fixos, como o filme. Mas plataformas em constante evolução. Não é a toa que um dos lemas é sempre beta. Há sempre uma nova funcionalidade, uma nova linguagem, um novo dispositivo mais rápido, inteligente e moldado pelo uso das pessoas.

Além disso, a experiência dessas plataformas é coletiva, mesmo quando é individual. Ver um vídeo no YouTube, mesmo quando você assiste no seu celular sozinho, é resultado de um ecossistema complexo, fluído e mutante de criadores de conteúdo e audiência.

E esses dois pontos mudam tudo.

Uma vez que você entendeu como o filme funciona, tudo se baseia em contar uma história melhor e explorar a potencialidade do meio. Em uma plataforma em constante mudança que serve de ecossistema para pessoas em constante mudança, a gramática deveria ser da mesma forma. Alguém precisa estudar em profundidade a plataforma e a gramática. Dentro de uma agência, com tantos outros afazeres e tantas outras plataformas, é muito difícil, talvez impossível se manter a par. Esse é o nosso papel, dos criativos da tecnologia.

2. Nick Law e Scorsese, coisas diferentes.

Propaganda não é o conteúdo ou produto que as pessoas buscam. Ninguém sai de casa com a família ou a namorada para assistir a um novo comercial da Coca, como saem para ver o novo filme do Scorsese. Scorsese é a Coca. O filme dele é o produto em si, não um veículo para fazer você lembrar ou comprar uma outra coisa.

Para mim, existe ainda mais uma falha nesse pensamento, que é não enxergar que existem muitos outros criativos fora das agências, que trazem um outro tipo de criatividade. Alguém teria a coragem de dizer que os engenheiros do Google ou YouTubers não são super criativos? Eu não.

O papel de Scorsese hoje não cabe a uma pessoa só. Essa separação entre quem produz a película, quem cria o filme e quem assiste não existe mais. YouTubers, por exemplo, muitas vezes são o ator, o roteirista, o câmera, o cenógrafo, o produtor, o estúdio e o próprio cinema. Sem falar que também são a audiência para outros YouTubers.

Nick Law acha que deveria estar ensinando, e não aprendendo. Talvez o problema seja exatamente esse. Propaganda não é mais um monólogo unilateral há muito tempo. E quem só quer falar e não quer ouvir acaba excluído da conversa.

Na minha opinião, todos deveríamos estar ensinando e aprendendo uns com os outros, pois todos, dentro e fora das agências, somos criativos. Criação não é um departamento, é um verbo. E a criação fica ainda mais interessante quando é aberta à troca, e não fechada em silos.

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