A mágica acontece embaixo da mesa
Opinião: muitas vezes esquecemos o que nos fez gostar de uma determinada profissão. No automático, deixamos de lado a importância dessa faísca, dos segundos que antecedem a combustão
Opinião: muitas vezes esquecemos o que nos fez gostar de uma determinada profissão. No automático, deixamos de lado a importância dessa faísca, dos segundos que antecedem a combustão
Meio & Mensagem
30 de junho de 2015 - 11h28
Por André Kassu (*)
Nascido no interior de Alagoas, o pequeno Hermeto não podia trabalhar na roça com os seus pais. A frágil pele albina carecia de proteção e, por isso, ele passava seus dias embaixo das árvores do terreno. Foi essa rotina que despertou a musicalidade em Hermeto Pascoal. Com um talo de jerimum nas mãos, ele talhou um pífano para acompanhar os pássaros que cantavam entre as folhas. Ao fim do dia, com o sol mais baixo, corria para a lagoa e acabou por aprender a tirar sons diferentes da água. Dali em diante, todo fruto virou música. Piano, saxofone, sanfona, caixinha de Tic-Tac, barriga de porco, bule, fio de barba, abelhas, não importa. O bruxo albino, que assombrou Miles Davis com sua inventividade, precisou do recanto de uma árvore para descobrir o seu caminho.
Na apaixonante série de documentários Chef’s Table da Netflix, Massimo Bottura revela que seu refúgio era embaixo da mesa da cozinha, onde a sua avó abria a massa. Segundo ele, ali o mundo ganhava uma perspectiva diferente. “A farinha caía da mesa, eu ficava de joelhos e roubava o tortellino cru recém-feito pela minha avó. Em cada prato que eu faço, tento levar você de volta para esse momento, para a infância”. É assim, que esse italiano que comanda a Osteria Francescana, o segundo melhor restaurante do mundo, define a sua cozinha. Uma eterna busca do lugar que despertou o seu olhar criativo. Para Massimo, não haveria a culinária não fosse o esconderijo embaixo da mesa.
Quando crianças, somos inquiridos pelos familiares: o que você vai ser quando crescer? As respostas nunca são racionais e essa é uma das tantas maravilhas do olhar infantil. Eu me imaginava médico porque tinha aprendido a falar “otorrinolaringologista”. Era o ápice da minha pequena existência. Tempos depois, fui atropelado pelo disco John Mayall’s Blues Breakers with Eric Clapton. Mais uma vez, o sentimento prevaleceu e escolhi ser músico. E, ao contrário da breve carreira de médico, a gaita me guiou por alguns anos.
Quis a ironia que a publicidade tenha sido a minha única escolha racional. Aceitei que as chances de um músico de Blues branco eram ínfimas e rumei para o mundo das agências seguindo o rebanho. Não achava nada de encantador naquele ambiente. Fui na obrigação de honrar uma faculdade que, cá para nós, havia sido um belo desperdício de dinheiro e energia. O meu tortellino cru veio com uma imagem e poucas palavras: Michael Jordan 1 x 0 Isaac Newton. Naquele momento, tudo fez sentido.
Muitas vezes esquecemos o que nos fez gostar de uma determinada profissão. No automático, deixamos de lado a importância dessa faísca, dos segundos que antecedem a combustão. Voltar para esse micro Big Bang é essencial para saber quanto nos distanciamos ou não daquele clique inicial. Você manteve o caráter ou o trocou por um aumento, uma vantagem? Você ainda luta pelo melhor trabalho ou ficou sentado na formulinha? As questões mudam, mas deveriam ser feitas quando recebemos uma proposta, quando nos achamos “foda”, quando a dieta parece rica em batráquios. Coragem é ser comentarista anônimo de si mesmo.
Em Janela da Alma, Hermeto Pascoal diz que, ao ouvirmos algo que gostamos, fechamos de leve os olhos e inclinamos na direção do som. É instintivo. Segundo ele, é assim que exercemos a visão interior e deixamos de escutar com os ouvidos, passando essa função para a nuca. Com poesia, Hermeto acompanhou os pássaros para nascer músico. Já Massimo fez de cada tortellino degustado a sua bússola. A mágica de verdade acontece embaixo da mesa, na sombra da mangueira, no recanto que nos respeita. O olhar criativo pode sobreviver em ambientes hostis, mas de vez em quando precisa visitar esse lugar no tempo para tomar um fôlego. E para chegar lá, faça como o bruxo albino: incline-se sobre si mesmo e ouça com a nuca.
*André Kassu é sócio da Crispin Porter + Bogusky Brasil
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