Tempestade perfeita

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Opinião

Tempestade perfeita

Se nada for feito, as consequências serão calamitosas, com destruição de valor, perda de milhares de empregos e fechamento de centenas de empresas


9 de outubro de 2019 - 18h20

(Crédito: Andre Furtado/Pexels)

A expressão “tempestade perfeita” é um calque morfológico (do inglês perfect storm) que se refere à situação na qual um evento, em geral não favorável, é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias, transformando-se em um desastre. A expressão também é usada para descrever um fenômeno meteorológico de grande magnitude, resultante de uma inusitada confluência de fatores.”

Esta é a explicação da expressão “tempestade perfeita” encontrada na Wikipedia. Além de se aplicar a uma conjunção de fatores meteorológicos que, somados, tomam uma proporção catastrófica, passou a ser utilizada a diversas outras áreas.

Tempestade perfeita descreve bem o que presenciamos hoje no audiovisual brasileiro. Diversos fatores se sobrepõem, as nuvens carregadas estão cada vez mais próximas e, em algumas áreas, o vento, os raios e a chuva já mostram o que está por cair sobre o mercado, especialmente dos produtores independentes.

E quais são estes fatores?

O primeiro deles é a questão Ancine X TCU. Desde meados do ano passado, tornou-se visível um problema que jazia nas pilhas de prestações de contas paradas na Ancine, aguardando análise: a falta de capacidade da agência de analisar as prestações de contas. Vale notar que, ao contrário do que algumas autoridades ou notas desavisadas na imprensa dizem, os produtores prestam contas de todos os projetos pelo simples motivo que, se deixarem de fazê-lo, tornam-se inadimplentes perante a Ancine, e daí não conseguem fazer mais nada com a agência.

O plano de ação da Ancine para atender os acórdãos 4835/2018 e 721/2019 segue em execução, às duras penas com os atuais cortes orçamentários sofridos pela agência. Além disso, o pedido de reexame segue em análise pelo ministro Raimundo Carreiro, ainda sem data para conclusão. Esse pedido, se recusado pelo ministro, poderá ter graves consequências em como os projetos são hoje executados.

O segundo é a inoperância dos comitês e conselhos. O Conselho Superior de Cinema (CSC) tem atribuição, conforme MP 2.228, Art 3º:

“I definir a política nacional do cinema;
II aprovar políticas e diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, com vistas a promover sua auto sustentabilidade;
III estimular a presença do conteúdo brasileiro nos diversos segmentos de mercado;
IV acompanhar a execução das políticas referidas nos incisos I, II e III;
V estabelecer a distribuição da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica CONDECINE para cada destinação prevista em lei.”

Não é pouca coisa… Especial atenção ao item V, ou seja, cabe ao CSC definir a distribuição da Condecine. E qual a situação atual do CSC? Inexistente, desde o início de 2019. O único ato do executivo em relação ao CSC neste ano foi baixar um decreto, retirando o CSC do Ministério da Cidadania, levando-o de volta a Casa Civil, estrutura original, prevista na MP 2.228.

Não bastasse o CSC inexistir num momento de tantas discussões importantes, que ditarão os rumos do audiovisual no Brasil nos próximos anos, o Comitê Gestor do FSA (CGFSA) também inexiste. Desde fevereiro o governo deveria ter nomeado seus integrantes, mas até o momento não o fez. Qual a consequência disso? O ano de 2019 está próximo do fim e até o momento não foi estabelecido o Plano Anual de Investimento 2019, definindo as linhas do FSA que receberiam os recursos do orçamento 2019.

E, para finalizar esse segundo fator, os comitês de investimento do FSA foram extintos há cerca de dois meses. O comitê de investimento, previsto no regulamento do FSA, é a instância onde projetos que estão fora do enquadramento (com pontuação abaixo do valor solicitado) são avaliados para receberem ou não o investimento. Trata-se de um órgão técnico, composto por membros da Ancine e do BRDE. Sem esta instância, os projetos que estavam sendo analisados, ou tiveram que se readequar a faixa de valores da pontuação, ou seriam arquivados à espera da imprevisível reconstituição dos comitês de investimento.

O terceiro fator é a batalha que se trava no congresso nacional. Mudanças na Lei do Seac, Regulação do VOD, renovação da Lei do Audiovisual são algumas das frentes de batalha travada nos escritórios e comitês do Congresso Nacional. Há o risco concreto de avanços importantes trazidos por esses marcos regulatórios serem perdidos. Muitos interesses nacionais e internacionais estão em jogo, e a depender dos pontos de vistas que prevalecerem, a produção independente poderá sofrer imensamente, regredindo a patamares pré-lei do SEAC.

O quarto e último fator são as questões internas da Ancine. A mais notória delas é a atual situação composição da Diretoria Colegiada, desfalcada de três membros, contando apenas com um diretor. Segundo seu regimento interno, são necessários três diretores para se formar uma Reunião de Diretoria Colegiada (RDC), instância onde são tomadas as principais decisões da agência. Mariana Ribas deixou o cargo de diretora da agência em fevereiro. Desde então, o governo não nomeou um novo diretor para substituí-la. Com o afastamento do então diretor presidente Christian de Castro no dia 28/08, a agência já não pode mais realizar as RDCs. Resta um subterfúgio no regimento interno, que permite a tomada de decisões ad referendum com dois diretores (diretor presidente mais um). E assim a agência tem seguido desde início de setembro, com várias decisões ad referendum tomadas, entre elas, temas muito relevantes como as revisões dos normativos de apresentação de projetos (IN 125) e a nova prestação de contas (IN 150).

Entretanto, o dia 1º. de outubro foi o último dia do mandato de Débora Ivanov. Com isso, desde o dia 02 a agência conta com apenas um diretor. Antes do fim do mandato de Débora Ivanov, a diretoria decidiu ad referendum, publicando a portaria 483-E, permitindo ao diretor presidente tomar diversas decisões monocraticamente. Embora seja uma medida paliativa, temas importantes, do dia a dia da agência, não poderão ser apreciados, como, por exemplo, julgar os recursos administrativos, instrumento comumente utilizado pelos agentes do mercado quando não estão de acordo com decisões da Ancine.

Somado a essa asfixia lenta e dolorosa imposta a Ancine pela não nomeação de seus diretores, a agência também sofreu corte substancial de seu orçamento. Não se trata dos propalados 43% de corte do FSA para 2020. Trata-se de corte do orçamento interno da agência. Funções como limpeza, cafezinho foram afetados. E, além disso, a agência ficou sem dinheiro para pagar o agente financeiro (BRDE), a cada contratação realizada. Assim, as contratações dos projetos das linhas de 2018 estão interrompidas, sem previsão de retomada.

Enfim, a tempestade perfeita urra à nossa porta. Se nada for feito, as consequências serão calamitosas, com destruição de valor, perda de milhares de empregos e fechamento de centenas de empresas.

E impedir que esta tempestade se abata sobre o mercado formado majoritariamente por micro e pequenas empresas é algo simples. Basta o governo começar a fazer o que é obrigado por lei: nomear os diretores da Ancine, os membros do CSC e os membros do CGFSA. Pode ser um bom começo.

Se não fizer nada, será o começo do fim.

**Crédito da imagem no topo: Reprodução

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