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Blog da Regina

Lia, Lorena e Ana Clara

A morte de Lygia me fez ficar pensando no Brasil de 2022. Quase 50 anos após a publicação, 'As meninas' nunca foi tão atual


7 de abril de 2022 - 9h46

A escritora Lygia Fagundes Telles (Crédito: Domínio Público)

A notícia da morte de Lygia Fagundes Telles na manhã do último domingo é um daqueles momentos em que um filme se passa pela sua cabeça. Imediatamente, me transportou para o final da minha adolescência, quando estava me preparando para o vestibular e li pela primeira vez o livro As meninas, para mim a obra mais impactante de Lygia. Nela, a leitora se depara com três jovens que fogem ao estereótipo das heroínas dos romances da época. Lorena, nascida em uma família nobre, cursa Direito e mora em um pensionato de freiras com as duas amigas, Lia (ou, como é mais conhecida, Lião – militante comunista, estudante de Ciências Sociais, filha de uma baiana e de um alemão ex-nazista e autora das melhores reflexões do livro) e Ana Clara (ou Ana Turva, por ser a mais misteriosa das três, tendo problemas com álcool e drogas – por isso, chega a trancar o curso de Psicologia).

Escrito em 1973, no auge da fase mais aguda da ditadura e seu pano de fundo, As Meninas é um tratado de Lygia sobre seu desagrado e recusa para com o regime militar. Em 1976, junto com alguns intelectuais da época, a autora foi à Brasília levando um documento contra a censura, conhecido como o Manifesto dos Mil. O foco narrativo do romance passa por uma alternância entre uma e outra personagem e isso transforma o enredo em um verdadeiro quebra-cabeça, caleidoscópio, que no decorrer da trama se complementa em cenas narradas por mais de um único ponto de vista. Machismo, relações abusivas, relatos de tortura e a força da sororidade, muitos anos antes desse verbete ter sido criado, estão presentes no livro.

Cada uma das três personagens conta histórias paralelas que se interconectam e juntas formam um belo panorama social sobre classe e raça. Lorena é alguém que possui um alto poder social, porém não tem o menor desejo de sair de sua situação confortável para efetuar qualquer mudança na sociedade. Pelo poder da reflexão, Lorena espera se colocar acima de qualquer situação concreta que se apresente a ela, ao mesmo tempo em que usa da caridade de seu dinheiro para ter alguma espécie de consolo para a sua inércia mais do que voluntária.

Já Ana Clara procura usar o seu passado como justificativa para uma postura egoísta e preocupada o tempo todo com ascensão social, repetindo o quanto odeia pobre e preto, e dizendo que, após tanto sofrimento tido, nada mais justo do que ela se dar bem com a fortuna do seu “escamoso” (modo como se refere a seu namorado).

Lia, por sua vez, procura engajar-se em um movimento crítico contra a estrutura social vigente, mas deve viver uma contradição atrás da outra, como a do envolvimento com um jovem do seu grupo revolucionário enquanto seu namorado está preso, a dependência do dinheiro de Lorena pertencendo a uma classe tão criticada por ela, e a constante crítica aos devaneios apaixonados da menina burguesa, ao mesmo tempo em que ela se propõe a ter um idílio amoroso disfarçado de autoexílio na Argélia com Miguel, seu namorado.

A ditadura militar no romance de Lygia aparece como pano de fundo de um contexto caótico. Vemos diante de nós personagens angustiadas com seu passado e tentando produzir algo concreto com seu futuro. Um romance protagonizado por mulheres com suas dores e angústias num contexto histórico complexo e opressor. A morte de Lygia me fez ficar pensando no Brasil de 2022. Quase 50 anos após a publicação, As meninas nunca foi tão atual. Um panorama social de um período tão conturbado que muita gente, infelizmente, ainda hoje, corteja e mitifica. Uma narrativa feminina importante para se entender a sociedade da época, cujos tentáculos permanecem, e de como as pessoas começam a se sentir fragmentadas em si mesmas, ao passo que o Estado ao seu redor se transforma em algo brutalmente opressor.

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