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Coffee Break: Os últimos especialistas

Esse mundo parece cada vez mais encantado com os multimídias, os multitalentosos, os multiempresários, os multiplataformas, os multimilionários, os multiqualquercoisa, os multinada


30 de abril de 2015 - 12h48

Por Marcos Caetano (*)

Acabo de receber a notícia da morte de Jorge Loredo, humorista que se consagrou com a hilária interpretação de Zé Bonitinho (a.k.a. “O perigote das mulheres”) ao longo de nada menos que seis décadas de televisão. Não sei se os ilustrados leitores e leitoras destas mal traçadas foram, em algum momento da infância ou da vida adulta, cativados pelo deboche inocente do personagem que, nesses tempos politicamente corretos, certamente seria tachado de misógino. Mas preciso confessar que era um grande fã de suas aparições em um sem-número de programas e canais de TV, nos quais desfilou picardia e brejeirice. Sempre, sempre, sempre interpretando o mesmo tipo. A tristeza pelo desaparecimento de uma espécie de amigo de infância e um ator que em tempos fáceis ou difíceis sempre me fez rir, se fez acompanhar de uma reflexão: será que ainda há lugar para especialistas no mundo?

Topete brilhoso e trabalhado com Gumex, sobrancelhas e bigodes fininhos, pintados com lápis de maquiagem, aquele olhar de cafajeste galanteador e as roupas coloridas e cafonas de dar dó, além do pente e dos óculos gigantes de Itu: assim era Jorge Loredo na pele de Zé Bonitinho. Programa após programa, ano após ano, década após década, seu esquete era sempre o mesmo: uma situação qualquer, uma bonitona dando sopa, o paquerador sem noção entra em cena com seu andar reboladinho, ajeita o topete com o pente gigante e parte para cima da beldade com os bordões de sempre. “O chato não é ser bonito, o chato é ser gostoso”,
“Câmeras, close: atentem para o tilintar das minhas sobrancelhas” e “Garotas do meu Brasil varonil, agora eu vou dar a vocês um tostão da minha voz” eram alguns dos mais populares. E aí ele invariavelmente cantava: “If I have a thousand of women, au-au, au-aaau…” Sempre a mesma coisa, sempre do mesmo jeito — e eu sempre ria.

No futebol, o especialista genial também parece um personagem fadado a desaparecer. É triste, mas aos poucos as pessoas vão se esquecendo de Garrincha — aquele que para alguns valentes apaixonados do velho esporte bretão deveria ser consagrado como o maior jogador de todos os tempos. Eu sei, é claro, que Pelé foi grandioso e inatingível como atleta. Mas Pelé — e isso me incomoda um pouco — foi perfeito demais, inventivo demais, versátil demais. Garrincha, não. Garrincha conseguiu se tornar uma arma letal dentro dos gramados com basicamente uma jogada: o corte seco, seguido de uma explosiva arrancada. Nenhum adversário jamais conseguiu parar essa jogada simples e genial como o Zé Bonitinho de Jorge Loredo. Depois de executá-la, o nosso Mané podia tanto chutar em gol quanto fazer um cruzamento ou repetir o mesmo drible diante de tantos quantos fossem os adversários que aparecessem pelo caminho.

Será que o futebol também se torna mais sublime quando, por meio de formas e caminhos imperfeitos, obtém a harmonia impensada? Será que, como nas grandes obras da literatura, não é no mistério do não contado, na magia das palavras não ditas, que reside a verdadeira arte do esporte? Seja lá como for, bendito seja o nosso menino passarinho, único jogador que conseguiu enxergar o jogo com olhos de poeta. Saudades daquele Quasímodo dos gramados, que fez do Maracanã a sua catedral de Notre-Dame — e das nossas vidas uma aventura cheia de sentido.

Zé e Mané. Bonitinho e Garrincha. Especialistas. Gênios de uma arte que inventaram apenas para eles mesmos — e que, ainda assim, encantou o mundo. Esse mundo que parece cada vez mais encantado com os multimídias, os multitalentosos, os multiempresários, os multiplataformas, os multimilionários, os multiqualquercoisa, os multinada.

Desapareceram o fotógrafo lambe-lambe, o afiador de facas, o relojoeiro, o sapateiro, o açougueiro, o borracheiro, o funileiro, o realejo, o Garrincha e o Zé Bonitinho. O mundo, para mim, fica mais medíocre sem eles. Gosto de saber que em algum lugar do Japão existe uma senhora que levou 50 anos aprendendo a fazer um chá perfeito, que consome três horas de ritual para ficar pronto. Consola-me a ideia de que algumas coisas nessa vida não podem ser simplificadas, agilizadas, downsizezadas, customizadas ou generalizadas. Entretanto, acredito que pensar desse jeito deve ser um hábito muito profundo, antiquado e específico — e que por ser profundo, antiquado e específico deve ser simplificado ou banido da face da terra. Como as pernas tortas de Garrincha e os bordões desgastados do Zé Bonitinho.

* Marcos Caetano é diretor global de comunicação corporativa da BRF 

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