Enfim, a normalização do consumo
O discurso de propósito das marcas cresceu, mas na prática, muito pouco foi feito
O discurso de propósito das marcas cresceu, mas na prática, muito pouco foi feito
Não é novidade para ninguém que o consumo tenha se tornado, nos últimos anos, assunto recorrente nas mais diversas esferas – da política ao marketing, da economia à publicidade. Enquanto na academia nos debruçávamos sobre a dimensão simbólica do consumo e sua transversalidade à vida contemporânea, governos e mercados, respectivamente, enxergaram neste fenômeno a melhor chance de enfrentamento a uma crise econômica global e uma grande oportunidade de potencialização dos lucros. Ao consumo, tudo.
E não demorou para que marcas dos mais diversos segmentos, justamente em reação a essa maximização generalizada do consumo, transmutassem seus discursos. De fábricas produtoras e vendedoras de mercadorias, transformaram-se em instituições simbólicas representantes de valores. De empresas assentadas no mais sólido tecido industrial, alçaram-se ao patamar de entidades signicas, defensoras de causas típicas do mais abstrato tecido sociocultural. E foi assim que vimos as marcas assumindo inéditos papéis de representação e referência; vimos os produtos praticamente desaparecerem dos anúncios publicitários; vimos as marcas encabeçando propósitos.
Para vender maquiagem, mulheres trans. Para reposicionar cerveja, mulheres empoderadas. Para anunciar novo perfume, casais gays. Para oferecer serviços bancários, leitura para crianças. E muita gente acreditou que isso era efeito de uma mudança maior. Depositamos todas as nossas expectativas no consumo, esvaziando qualquer outra possibilidade de ação efetiva para a transformação da sociedade. Acreditamos, por anos, que bastava que as marcas trouxessem as questões sociais para os seus belos e perfeitos discursos, que nada mais precisaria ser feito. E assim, nada foi feito.
Demos às pessoas como única possibilidade de transformação o acesso a bens de consumo, a marcas idealizadas e a experiências prazerosas. Sentimo-nos orgulhosos de nosso país quando vimos o gigante despertar em anúncio de marca de uísque. E, quanto mais o consumo crescia, mais fomos aprendendo a pensar à sua semelhança. Ao ponto de assumirmos a lógica do consumo em tudo na vida. Estetizamos os discursos, condicionamos nossas práticas, simplificamos os pensamentos. Eliminamos dessa nossa vida ilusória o esforço diário no convívio com a diferença; o trabalho cotidiano pelo entendimento do contemporâneo; a dedicação constante em favor da cidadania e do respeito mútuo. Erguemos um inebriante mundo novo com o mais rarefeito, ilusório e inconfiável dos materiais: o consumo.
Só que os tempos mudaram, a roda da economia girou, as bolhas estouraram e a crise nos atingiu em cheio. Com menos dinheiro circulando, sem mais chances de consumir, o acesso ao consumo se encerra e nada mais para de pé, nada mais parece fazer sentido. Fomos capazes de esquecer por alguns instantes – por alguns anos, aliás – que, na publicidade, por definição, tudo é bonito, agradável e feito para vender. De modo que todas as causas que nela se viram talvez não tenham passado de mero panfleto, de mera vitrine, de mero artefato para o consumo.
Tivemos, nesses últimos anos, importantes e louváveis transformações no país? Sem dúvida. Milhões de crianças e jovens tiveram acesso à educação formal? Milhões de pessoas deixaram a completa miséria? Minimizamos os históricos problemas da fome e da falta de água? Sim, isso é incontestável. Mas não há desenvolvimento econômico-social – este sim ligado diretamente ao consumo – que se baste sem o devido desenvolvimento humano, cognitivo e afetivo – este, temos que reconhecer, em quase nada favorecido pelo consumo.
É chegado o tempo de repensarmos a questão do consumo. Somos um país capitalista, em que o consumo é central, o que nos impede de simplesmente negá-lo. No entanto, é urgente que consigamos redimensioná-lo, tornando-o parte de uma ecologia política, cidadã e promotora do efetivo desenvolvimento humano – cognitivo e emocional. O desafio que se impõe à publicidade e aos publicitários é não se acomodar no mero reconhecimento da sua participação nesse processo, mas assumir que o seu fazer profissional é e deve ser político. E deve, ao fim e ao cabo, favorecer, antes de qualquer coisa, a normalização do consumo.
*Crédito da foto no topo: Vedanti/Pexels
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