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Opinião

O fator humano

Ainda que diante de certos cenários as chances de sucesso sejam de uma em um milhão, há situações em que desistir não é opção


26 de setembro de 2017 - 14h57

Os anos 1980 e suas épicas rivalidades, nas mais diferentes modalidades, foram um deleite para os amantes dos esportes. Ayrton Senna e Alain Prost disputavam as curvas palmo a palmo e decidiam títulos jogando o próprio carro em cima do outro na Fórmula 1. Michael Jordan e Magic Johnson duelavam pelo protagonismo no basquete. Tom Carroll e Tom Curren levaram os campeonatos de surf a um novo patamar. No futebol, a rixa era entre Zico e Maradona — ao menos para nós, brasileiros.

E havia Anatoly Karpov e Garry Kasparov no xadrez.

Todos esses embates eram ricos em narrativas por envolver oponentes de personalidades distintas e promover um sentimento quase bélico entre seus fãs mais ardorosos, a ponto de a derrota do adversário ser tão saboreada quanto a vitória de seu predileto. Eu, criança, obviamente tinha meus favoritos em cada uma dessas disputas. Mas o maior barato estava nos duelos em si e todas as nuances que compõem esses momentos mágicos que o esporte propicia — dos números, que incontestavelmente definem quem leva vantagem quando frente a frente em campo, às variáveis emocionais, como origem, estilo, caráter e carisma, que muitas vezes nos fazem optar não pelo provável vencedor, mas por quem a gente mais admira e se identifica, enfrentando de peito aberto a obviedade estatística.

O clássico entre Karpov e Kasparov preenchia todos esses requisitos.

Havia diferença na idade, na forma de jogar, no comportamento longe dos tabuleiros e nas opções políticas durante um período de transição que culminou com o fim da União Soviética. Kasparov era 12 anos mais novo, agressivo ao mover as peças, arrogante de tão seguro e crítico ferrenho do regime soviético. O antagonista ideal para o comunista discreto, cerebral e detentor do título mundial por uma década, Karpov. Entre 1984 e 1990, foram 144 jogos (21 vitórias de Kasparov, 19 de Karpov, e impressionantes 104 empates) em cinco grandes duelos. O primeiro deles teve meses de duração. Karpov acabou mantendo o título mundial, que passaria às mãos de Kasparov em 1985.

Mas foi apenas 11 anos depois do triunfo sobre o grande rival que Kasparov realmente se deparou com seu maior carrasco: Deep Blue.

A primeira série de partidas contra o computador da IBM terminou com vitória do ser humano. Houve um único senão: o primeiro jogo foi vencido pela máquina. “Naquele momento, senti que era apenas uma questão de tempo ser derrotado por um computador”, confessou Kasparov, em palestra durante evento da IBM, realizado na quarta-feira 20, em São Paulo.

As suspeitas do maior enxadrista da história tornaram-se realidade no ano seguinte, em 1997, 20 anos atrás.

A vitória de Deep Blue será sempre um marco na interação entre homem e máquina. A sensação de Kasparov quanto à inevitabilidade do predomínio dos computadores ganhou as massas. Já com 20 anos, senti a derrota dele como se também fosse minha. Estávamos fadados a ter nossos destinos decididos por chips e processadores. Se podiam nos bater no xadrez, um ícone que representava o estado da arte de um cérebro funcionando em níveis máximos de concentração e raciocínio, não haveria mais limites para o potencial da inteligência artificial — embora, tecnicamente, não seja essa a melhor maneira de se referir ao Deep Blue, pois seu ponto alto era mesmo o hardware, diferentemente do nosso contemporâneo Watson, também da IBM.

Kasparov diz que a derrota o atormentou por anos, mas não se arrepende de ter aceitado o desafio.

“Quais eram as minhas possibilidades? Aceitando o desafio, claro, eu podia entrar para a história como o primeiro campeão mundial de xadrez a ser derrotado por um computador. Caso não topasse, com toda certeza seria o primeiro campeão mundial a fugir do embate com um computador”, pondera. “Não havia como eu não jogar”. E aí está, segundo o grande mestre do xadrez, a diferença emblemática entre eles e nós: “Uma máquina pode calcular que, em certos cenários, as chances de sucesso serão de uma em milhões. Mas nós humanos decidimos correr esse risco, pois sabemos que, mesmo diante de tamanha improbabilidade, há situações em que desistir simplesmente não é uma opção”.

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