Meio & Mensagem
28 de setembro de 2011 - 11h17
“Tenho uma raiva de botar Photoshop. Eu não deixo botar nem pó de arroz em minha cara pra ver na televisão. Agora, Photoshop, detesto! Fica com cara de babaca. Parece um político babaca!”. Com estas palavras ditas numa entrevista a Jô Soares no início de agosto, Caetano Veloso, de 69 anos, deixou no ar o que achou da capa da edição de julho da revista Rolling Stone (foto) que traz o cantor e compositor ao lado da parceira e amiga Gal Costa. A imagem do rosto sem rugas não agradou o artista. Procurada, a revista não comentou o assunto até o fechamento da edição 1478.
Este não é o primeiro caso de manipulação de imagem na mídia que desagrada alguém. O próprio ato de tirar uma fotografia denota certa dose de manipulação, já que o resultado é fruto do ponto de vista do autor, ou seja, subjetivo. A interferência em fotos é quase tão antiga quanto a própria arte. Um exemplo clássico é a foto de um discurso do líder soviético Vladimir Lenin em Moscou, em 1920, da qual foram limadas as imagens de Leon Trotsky e Lev Kamenev após estes virarem adversários políticos de Josef Stalin.
Com a evolução tecnológica e a popularização dos softwares que possibilitam os retoques e efeitos — o mais famoso deles o já citado Photoshop, da Adobe —, a manipulação de fotografias na mídia se tornou uma prática difundida nas redações e até virou assunto de mesa de bar para discutir se as curvas e detalhes dos corpos das mulheres que estampam as páginas das revistas masculinas são verdadeiros ou modificados no computador.
Mas não só estes títulos se utilizam de recursos para tratar fotografias. A maioria dos jornais e revistas usa este expediente por questões estéticas e, em alguns casos, por motivos editoriais. O importante é saber qual o limite dessa manipulação. “Já passaram do limite há um tempo. Uma coisa é fazer um trabalho estético. Outra é deturpar a realidade. Uma vez, minha tatuagem apareceu no outro lado numa revista (o desenho fica na parte esquerda da barriga e apareceu na direita)”, conta a cantora Luiza Possi, que não se lembra do nome da publicação.
Na busca pelo equilíbrio entre os objetivos dos editores de arte e fotografia, que primam pela qualidade estética do material, e os interesses dos leitores, que desejam receber informações com credibilidade, pode estar o caminho para estabelecer os limites da manipulação das imagens. Para debater a questão, Meio & Mensagem ouviu quatro profissionais que atuam diretamente na área. Confira a seguir os depoimentos.
Veículo
"A primeira questão é filosófica: fotografia não é realidade, mas uma representação possível da realidade. Um especialista em retratos sempre escolhe o melhor ângulo do modelo, ou seja, aquele em que as imperfeições e os defeitos são minimizados. Até um fotojornalista, que aparentemente faz imagens reais, faz escolhas que melhor representem um ponto de vista. Toda fotografia feita para publicação é manipulada. E isso não começou com a invenção do Photoshop, que é de 1987. O Photoshop é apenas um programa da Adobe para edição de imagens bidimensionais, mas virou verbo, ‘photoshopar’, cuja definição seria ‘ato ou efeito de mexer em fotografias para transformar mulheres feias em gostosas’. No entanto, acredite, nenhum editor de imagens faz milagres. O limite da manipulação é o limite do bom senso que, aliás, é o que prevalece nas redações e agências de publicidade. Embora exemplos de manipulações desastrosas sejam festejados na internet, estes são a minoria. Todas as imagens que você vê impressas foram, de alguma forma, manipuladas – e você nem percebe isso, certo? Este é o limite: se a ‘mexida’ é perceptível, é porque ‘mexeram’ demais. Melhorar a realidade, pode. Transformar a realidade, não".
Photodesigner
“Se por um lado a pós-produção é fundamental para garantir a boa qualidade na reprodução de uma imagem, por outro, é também capaz de destruir um trabalho, expondo o anunciante ou o veículo (revista, jornal etc.) ao ridículo. Os efeitos negativos de uma foto ruim não são tão grandes quanto os efeitos negativos que uma imagem mal retocada pode gerar. No momento de fazer uma foto, nem sempre temos o controle total da situação. Agora, com o retoque de imagens, a questão já é diferente. Temos a opção de seguir por um caminho ou outro. Se o trabalho não ficou bom ou passou do ponto, temos a possibilidade de voltar e tentar seguir por outro caminho para melhorar este resultado. Mas isso é um trabalho de direção. Nem sempre o operador que está retocando uma foto tem um olhar crítico. Por este motivo, é fundamental que exista uma direção de arte sobre esta pós-produção. Apesar de algumas imagens exageradas que estamos acostumados a ver no nosso dia a dia chegaram neste resultado por pedidos de quem fez esta direção de arte, temos que aprender a ser mais criteriosos. O Photoshop não é o vilão da história. Ninguém é obrigado a publicar uma imagem malfeita ou com exageros grotescos. Temos a possibilidade de mudar isso, já que a ferramenta existe para melhorar uma foto, não para estragar”.
Veículo
“A manipulação da imagem começa antes de o fotógrafo fazer a foto. Quando ele escolhe a lente que vai usar, está de certa forma manipulando a realidade, escolhendo seu jeito de mostrá-la. Quando decide o diafragma que vai usar, ele está escolhendo se vai dar mais ou menos foco em determinada cena ou objeto. Cartier-Bresson foi um dos últimos a entregar a foto intacta. Ele não fazia intervenções nem na hora de fazer, nem na de publicar. De lá para cá, com o surgimento cada vez mais acessível das técnicas de manipulação, as pessoas usam as ferramentas disponíveis para deixar sua marca na imagem. A ‘foto de autor’ é o grande catalisador de todos estes artifícios. Ao entregar a foto para o editor, será a vez deste dar sequência ao processo de manipulação. Quando o editor, por limitação de espaço, dá um corte na imagem, ele a está manipulando. Numa ponta, profissionais que querem entregar o melhor. Na outra, um consumidor que exige o melhor. O leitor de uma revista masculina não vai comprá-la para ver celulite e o leitor de uma revista semanal de notícias quer ver a melhor foto da posse do presidente, mesmo que para isso seja preciso remover um pedaço de papel picado que está bem no olho do eleito. Neste pacto vale quase tudo e é aí que está a grande questão. Qual é o limite? Se não houver uma resposta, que prevaleça o bom senso”.
Acadêmico
“As diferentes ideologias sempre tiveram na fotografia um poderoso instrumento para a manipulação da opinião pública, e tal se deu graças à sua credibilidade: ‘espelho do real’. A verdade da fotografia, porém, é aquela que se vê nos múltiplos fragmentos de um espelho partido; a ficção é inerente à sua natureza, seja na sua produção, seja na sua recepção. O conceito de manipulação não pode ser delimitado num senso estrito; sua elasticidade é ilimitada. As manipulações fazem parte da trama da informação; começam no momento em que o fotógrafo enquadra determinado assunto no visor da câmera. Segue ainda durante a pós-produção, no ambiente mágico de ‘tratamento’ de imagens onde se maquila a realidade, reduz-se rugas e se tornam mais volumosos os seios, e que se tornam, enfim, sedutores e grandiosos os microapartamentos dos anúncios de domingo. As imagens não são inocentes, elas moldam o pensamento de uma época e conformam mentalidades. Se, por um lado, tiveram e seguem tendo papel relevante enquanto instrumento de registro de fatos do cotidiano, por outro, sempre se prestaram aos governos, à polícia, à imprensa e, portanto à história, como suportes de processos de construção de realidades”.
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