Freud não menstrua
Que possamos deixar ir o que não fecundou, sem choro ou com choro, com ou sem luto, mas deixando sair de nós o que já não nos pertence
Que possamos deixar ir o que não fecundou, sem choro ou com choro, com ou sem luto, mas deixando sair de nós o que já não nos pertence
30 de janeiro de 2023 - 15h13
Curioso como menstruar dá à mulher uma chave extra de acesso ao seu inconsciente. Involuntariamente todos os meses recebemos essa senha de entrada em camadas profundas da nossa mente. Quando vemos, estamos abraçadas numa melancolia ao mesmo tempo fértil e estéril.
Fértil porque remexe sensações, sentimentos, medos, alegrias, tristezas. É assim mesmo, junto e misturado, como uma arraia gigante que de uma hora para outra resolve se mexer do fundo do mar, provocando um pequeno tsunami de areia e tudo o mais que estava assentado no fundo da alma.
Estéril porque a menstruação é o expelir do que não fecundou, o que se deu por finalizado sem um passo a mais, é o final de uma expectativa pressuposta mensalmente.
E o que expelimos todos os meses? O que sai de nós nessa não gestação? Será que vale prestar atenção no que queremos manter a qualquer custo nesse útero? Será que vale deixar ir?
Como parte da cena dessa reflexão, me veio o trecho de uma música do Chico Buarque sobre como é sempre desconcertante rever um grande amor. Sempre vi essas palavras sentadas à mesa nessa ordem: “é-sempre-desconcertante-rever-um-grande-amor” como tendo o significado de um amor não resolvido, um resquício de amor que desconcerta.
Mas, hoje, embebida da melancolia que o momento traz na taça, vejo a cena das mesmas palavras na mesma posição com outro significado, ouço um desalento, um cheiro de mofo, sinto que o desconcertante é olhar um grande amor sem o amor, sem o tom de imortalidade e especialidade que um amor nos traz.
Ver o que foi um grande amor de volta na multidão é desconcertante, é incomodo. Tem um desejo não realizável de resgatar a pessoa para a área vip, para o espaço reservado para poucos, o nosso cômodo de observação que dá unidade e peculiaridade para esses habitantes.
Os cidadãos do País Intimidade têm entrada liberada em quase todos os lugares, e de repente um ex-morador perde todos os direitos e regalias, sem direito a recurso ou pedido de revisão, simplesmente deixa de ser. Como não desconcertar?
Num delírio quase divertido e com doses extras desse ópio natural — os hormônios –, eu pensei no Freud, e em tantos outros pensadores homens. Eles não menstruam, não acessam involuntariamente mil léguas submarinas inconscientes, e aí usam outros artifícios ou códigos para esse acesso, mas isso, claro, é pauta de outra crônica. Aqui, nessa, quero dividir essa remexida dos lugares à mesa das palavras, dos seus significados, das roupas dessas palavras, do quanto o tempo nos traz esses outros pontos de observação em que tudo muda sem sair do lugar, como a música do Chico Buarque. Aliás, mesmo para ele ou outro artista, a interpretação muda em tempos diferentes.
As palavras vestem roupas, e roupas novas na mesma cena. Elas ficam no mesmo lugar, mas trocam de figurino, e a representação da cena muda completamente para quem assiste.
Que, então, nessa nova perspectiva, possamos deixar ir o que não fecundou, sem choro ou com choro, com ou sem luto, mas deixando sair de nós o que já não nos pertence.
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