Como a solidão virou crise global para governos e empresas
Isolamento social é apontado como ameaça à saúde pública pela OMS. Entenda qual o papel das companhias e da sociedade no combate ao problema
Como a solidão virou crise global para governos e empresas
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Lidia Capitani
13 de junho de 2025 - 10h45
(Crédito: Unsplash)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 2023, que a solidão virou uma ameaça à saúde pública global. O tema ganhou destaque após o cirurgião-geral dos Estados Unidos, Vivek Murthy, publicar no mesmo ano o relatório “Our Epidemic of Loneliness and Isolation”, indicando como o isolamento social cresceu de forma silenciosa, a ponto de ser considerado uma epidemia nos Estados Unidos.
“O que a gente precisa entender é que a solidão é uma questão de saúde pública, não só pessoal. Estamos falando de um fenômeno social, de um sintoma de uma sociedade que está doente pela desconexão”, reflete Ana Carolina Peuker, fundadora e CEO da Bee Touch, deeptech que avalia os riscos psicossociais no ambiente de trabalho.
Em seu relatório, o médico estadunidense destaca como aproximadamente metade dos adultos dos EUA relataram se sentirem solitários em anos recentes, mesmo antes da pandemia de Covid-19, que exacerbou o problema com os lockdowns e a obrigatoriedade do isolamento social. Além disso, ele ressalta como o sentimento de solidão impacta a saúde mental e física das pessoas.
Segundo Murthy, a falta de conexão está relacionada ao aumento do risco de morte prematura, doenças cardiovasculares, demência, acidente vascular cerebral, depressão e ansiedade. Sem falar que este impacto na mortalidade é comparável ao de fumar até 15 cigarros por dia, e até maior do que o risco associado à obesidade e à inatividade física.
As consequências do crescente isolamento social podem ser sentidas em escolas, locais de trabalho e organizações cívicas, onde o desempenho, a produtividade e o engajamento diminuem, conforme aponta o estudo. Ademais, a diminuição da conexão social também está relacionada a tendências como a queda da confiança nas instituições e a polarização.
O relatório ainda revela que há impactos substanciais na economia. Estima-se que o isolamento social entre idosos custe aproximadamente US$ 6,7 bilhões em gastos excessivos anuais do Medicare, e que o absenteísmo relacionado ao estresse da solidão custe cerca de US$ 154 bilhões anualmente aos empregadores norte-americanos.
“Estar sozinho traz uma sensação de abandono, de não ser gostado, e isso gera várias percepções dependendo das crenças de cada pessoa. Pode ser a ideia de que os outros não são confiáveis, ou de que eu não sou legal o suficiente, então não vou ser aceito num grupo. Cada pessoa tem um motivo pelo qual vai se fechando”, explica Karen Vogel, psicóloga e professora na The School of Life.
De acordo com especialistas, a saúde social é um componente essencial da nossa saúde e bem-estar como um todo. Está relacionada à conexão social, que engloba a estrutura (número e variedade de relacionamentos), função (diversão, apoio emocional, mentoria, etc) e qualidade (aspectos positivos ou negativos) dos relacionamentos interpessoais.
“Quando enfrentamos um desafio, é essa rede de apoio, família, trabalho e comunidade que fazem a diferença. Esse contexto é essencial para a saúde, porque atravessa até o nosso senso de identidade. Os vínculos que construímos são também testemunhas da nossa vida. Eles fazem parte do nosso bem-estar, tanto físico quanto mental”, defende Ana Carolina.
O relatório aponta diferentes fatores que contribuem para o aumento do isolamento social, tanto individuais quanto comunitários e sociais. Do ponto de vista individual, existe uma crescente incapacidade de lidar com a adversidade ou o aversivo. “Uma das funções do isolamento social pode ser evitar lidar com o aversivo, ou seja, com os desconfortos que uma relação traz. Morar com mais de uma pessoa é mais desafiador do que morar sozinho. Ficar sozinho vira sinônimo de paz”, reflete Karen.
Outra causa que Vogel destaca é a falta de habilidades sociais. “Pode existir uma dificuldade real de socializar. E muita gente é assim: não é que não quer, é que se sente envergonhada, não sabe como se aproximar. Então, acaba escolhendo a solidão”. Por fim, a psicóloga também pontua o acúmulo de experiências “fracassadas” como uma das causas para o isolamento social. “Muita gente tentou e não conseguiu ter êxito num relacionamento de casal ou familiar. E aí a sensação não é ‘quero ficar sozinha porque gosto’, mas ’tentei e fracassei’. A solidão, nesse caso, é uma resposta ao insucesso”, continua.
Vivek, por sua vez, traz dados sociais que indicam outros motivos para o aumento da solidão, dentre eles o aumento do tempo médio gasto sozinho e diminuição do tempo médio gasto entre amigos, além da diminuição do círculo social e da redução de outras formas de engajamento social, como grupos cívicos, religiosos e comunitários. Outros fatores incluem a diminuição do tamanho das famílias e taxas de casamentos e o aumento de pessoas morando sozinhas.
Segundo estudos e especialistas, a tecnologia também tem impactado diretamente no aumento da solidão e do isolamento social. De acordo com o relatório de Murthy, apesar de facilitar a comunicação, a tecnologia está relacionada à diminuição do engajamento presencial, ao monopólio da atenção e à redução da qualidade das interações e da autoestima. “A rede social traz uma pseudo sensação de comunidade, mas, no fundo, você não está realmente junto com a pessoa, não está vivendo as mesmas experiências no mesmo lugar”, reflete Karen.
“O celular nos isola completamente do que está ao nosso redor. É uma conexão que não supre. As redes sociais são um dos grandes gatilhos dessa solidão global”, complementa Andrea Bisker, fundadora e CEO da Spark:off. “O que a gente vê por trás das telas é um vazio relacional crescente, uma fadiga emocional. Uma sensação crônica de desconexão social. Então, por mais conectados que pareçam, a verdade é que a gente nunca esteve tão sozinho. As redes sociais ampliaram o alcance, nos conectam com quem está longe, mas muitas vezes nos afastam de quem está perto”, acrescenta Peuker.
O relatório de Vivek destaca estudos que mostraram que, para as mulheres, a solidão está significativamente associada à hospitalização por automutilação, enquanto que, para os homens, a solidão está mais relacionada à morte. Outros estudos destacados pelo autor relacionam a falta de apoio emocional entre mulheres com maior risco de desenvolvimento de diabetes tipo 2.
A sobrecarga com as tarefas de cuidado também pode impactar a saúde social feminina. “As mulheres ainda acumulam muitas funções: a responsabilidade com os filhos, com a família, com os idosos, com pessoas doentes. E isso faz com que a gente tenha menos tempo para o autocuidado, para o lazer, e muitas vezes isso leva a um isolamento por causa da própria rotina”, acrescenta Ana Carolina.
“E tem uma outra questão: historicamente, as mulheres são as mantenedoras dos vínculos. São elas que fazem a gestão emocional do lar, da família, do próprio ambiente de trabalho. Então, quando esses vínculos não se sustentam ou falham, a culpa recai sobre elas. Isso gera uma sensação de esgotamento muito grande. E esse sentimento de solidão pode, sim, atingir níveis bem críticos”, continua Peuker.
Ana Carolina Peuker, fundadora e CEO da Bee Touch (Crédito: Morgana Mazzon)
No relatório do médico norte-americano, embora a solidão seja mais prevalente entre jovens adultos, as taxas mais altas de isolamento social são encontradas entre os mais velhos. Ele também cita estudos que indicam que a solidão e o isolamento social aumentam o risco de desenvolver demência, além de diminuir habilidades cognitivas e aumentar o risco de hipertensão entre adultos mais velhos.
O Japão vive esse problema de forma intensa. Nos últimos anos, houve um aumento da criminalidade entre adultos acima de 65 anos que buscavam ser presos por pequenos delitos para terem um lugar para morar e serem cuidados. Outro movimento que ressalta o problema da solidão no país é o termo “Kodokushi”, criado para se referir à morte solitária, muitas vezes de idosos isolados em suas casas, cujos corpos só são descobertos após um longo período de tempo.
Ainda no Japão, foi criado outro termo relacionado à solidão: “Hikikomori”, referente ao movimento de adolescentes e jovens adultos que se distanciam da vida social e preferem ficar reclusos em casa. O aumento da solidão e seus impactos levou o governo japonês a criar o Ministério da Solidão, para promover campanhas e políticas públicas voltadas à saúde mental, à prevenção do suicídio e ao apoio a pessoas que vivem sozinhas, reconhecendo a solidão como um fator de risco significativo para transtornos mentais e suicídio.
Este fenômeno, apesar de local, está relacionado aos novos comportamentos que as gerações mais jovens estão adotando. O mesmo relatório indica que a taxa de solidão entre os jovens adultos aumentou a cada ano desde 1976 e, atualmente, é o grupo etário com as maiores taxas de solidão, quase duas vezes mais que a população idosa. Ademais, o relatório também indica que a solidão e o isolamento social entre crianças e adolescentes estão relacionadas ao aumento do risco de depressão e ansiedade.
“Eu sou de Porto Alegre, e estava lendo sobre como a vida noturna lá está em crise. Os bares estão fechando, tem toda uma nova geração mais voltada para o bem-estar que está correndo, que não consome mais álcool. Percebo que os mais jovens preferem ficar em casa, nas redes sociais”, analisa Ana Carolina. Neste mesmo grupo etário, Vivek aponta que o tempo gasto presencialmente com amigos diminuiu cerca de 70% em quase duas décadas.
Ainda assim, a convivência social segue importante, principalmente para as novas gerações “O jovem tem a necessidade de estar em grupo. E quando ele não está, seja porque não desenvolveu habilidades sociais ou porque está sofrendo bullying e sendo excluído, a gente precisa cuidar disso com muito carinho”, afirma Karen Vogel.
O relatório de Murthy também aponta que a porcentagem de adolescentes online “quase constantemente” dobrou desde 2015. E, conforme já foi destacado, o aumento do tempo online em detrimento das conexões presenciais pode ter grandes impactos na autoestima e saúde mental destes jovens.
“Eles se sentem inadequados o tempo todo por causa das redes sociais. Existe uma exigência de performance constante e, ao mesmo tempo, eles não dedicam tempo para construir relações efetivas. Tudo é rápido, descartável”, reflete Ana Peuker. “Então, precisamos investigar se é ansiedade social, bullying ou algum pensamento de que ele não é uma pessoa legal, de que as pessoas não gostam dele. Nesses casos, a gente precisa intervir”, complementa Karen.
Tanto as especialistas e o relatório americano apontam a necessidade de trazer consciência para o fato que a solidão é um problema que precisa ser cuidado. “O primeiro passo é a gente se dar conta de que está se sentindo sozinho e carente, porque tem muita gente que ainda nem percebeu isso”, continua a psicóloga.
A nível individual, a professora da The School Of Life ressalta a responsabilidade de cada um de se perceber solitário e agir contra essa tendência. “A gente pode buscar uma atividade física em grupo, pode meditar em grupo, procurar experiências que nos façam sair da bolha, conversar e desenvolver habilidades de se relacionar. Porque, quanto menos a gente se relaciona, mais perdemos essa habilidade”, afirma.
Vogel indica que precisamos incentivar mais os encontros presenciais, para fora das telas. Mesmo que existam emoções de medo, vergonha ou ansiedade, cada um deverá seguir seu próprio repertório de comportamento e buscar mais interações sociais.
Entretanto, para além das iniciativas pessoais, Ana Carolina Peuker aponta a responsabilidade do poder público frente ao problema. “É fundamental compreender a solidão como um fenômeno social. Isso exige políticas públicas que promovam o pertencimento, que incentivem as pessoas a contribuírem com suas comunidades, e que fortaleçam cidades que favoreçam o encontro e o cuidado”, reforça.
No caso das empresas, com as novas configurações de trabalho, como o modelo home office ou híbrido, a forma como as pessoas mantêm os vínculos também foi impactada. “Por isso, é fundamental que as empresas façam um diagnóstico para entender se existem sentimentos de solidão, exclusão ou silenciamento no ambiente de trabalho”, continua a CEO da Bee Touch. Tal fato se torna ainda mais relevante com a atualização da NR-1, que responsabiliza as empresas a mapear os riscos psicossociais de seus ambientes.
A executiva aponta a necessidade de criar ambientes que favoreçam as trocas, fortaleçam os vínculos e o pertencimento, incluindo rituais corporativos de check-in emocional, rodas de conversa, recursos de apoio à saúde mental e também grupos de pertencimento, principalmente para celebrar a diversidade.
“Quando a gente pensa em business, hoje existe um espaço enorme para as marcas atuarem como conectoras e ajudarem a fortalecer comunidades”, destaca Bisker. Andrea cita o case do Boticário, que criou a Casa Menopausa, um espaço de acolhimento e conexão entre mulheres maduras para debater suas vivências com a menopausa. Outras marcas estão trazendo especialistas como psicólogos e psicanalistas para criar esses momentos de conversas dentro das empresas, ou, ainda, criando retiros para fomentar as trocas presenciais.
“A Rare Beauty, da Selena Gomez, criou o Comfort Club, um hub que acolhe pessoas que se sentem sozinhas”, destaca Bisker. Outro exemplo é o Bumble, aplicativo de namoro, que tem promovido eventos chamados “Bumble IRL” (Bumble In Real Life), que são encontros presenciais entre grupos de pessoas.
Andrea Bisker, CEO da Spark:off (Crédito: Divulgação)
Para as lideranças, o recado é o seguinte: “olhem para o papel que vocês têm em promover conexões entre os colaboradores”, sugere Andrea. Uma de suas recomendações é o letramento em saúde social. “As empresas têm um papel enorme nisso, de criar espaços de troca, de conversa, de promoção da saúde mental, tanto com os colaboradores quanto com os consumidores”, conclui a CEO da Spark:off.
O último capítulo do relatório de Vivek aponta uma estratégia nacional para o avanço da conexão social dividida em seis pilares. O plano inclui a necessidade de ressaltar a importância da conexão social para a saúde e bem-estar, e a difusão desse conhecimento na sociedade. O texto também aponta a inclusão da conexão social nos currículos formais de educação em saúde e a responsabilidade dos profissionais de saúde em desenvolver, liderar e apoiar programas de educação pública, campanhas de conscientização e programas de treinamento. E destaca a responsabilidade dos indivíduos de compreender a importância da saúde social e procurar profissionais de saúde quando necessário.
Por fim, o texto aponta o papel das empresas de mídia e entretenimento de produzir conteúdo que promova interações sociais positivas e relacionamentos saudáveis, propondo narrativas que ampliem a conscientização pública sobre os benefícios da conexão social e os riscos do isolamento.
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