A lente criativa das mulheres: os desafios delas no audiovisual publicitário
Falta de oportunidades, estereótipos de gênero, teto de vidro e desigualdades salariais são alguns dos obstáculos que as diretoras enfrentam
A lente criativa das mulheres: os desafios delas no audiovisual publicitário
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Lidia Capitani
1 de novembro de 2023 - 12h19
A transformação da produção audiovisual publicitária para as mulheres começou com o movimento Free the Bid, iniciado em 2017, nos Estados Unidos. “O Free the Bid visava garantir a presença de pelo menos uma mulher em concorrências publicitárias, desafiando o ciclo vicioso que excluía as diretoras por falta de experiência em alguns segmentos”, explica Marianna Souza, presidente da APRO (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais) e porta-voz do Free The Work Brasil.
“Com o tempo, o movimento evoluiu para o Free the Work, ampliando seu escopo para promover a diversidade em todas as formas, incluindo negros, profissionais LGBTQIA+ e pessoas com deficiência. Atualmente, lidero esse movimento no Brasil”, diz Marianna.
Além da dificuldade de participar de concorrências, existe ainda um problema mais profundo, que mascara a inclusão feminina. De acordo com uma pesquisa realizada pela Free the Work, no Brasil, as mulheres têm maior representatividade em alguns segmentos específicos, como beleza e moda, onde elas são 64% das diretoras, lifestyle, que aparece em segundo, com 37,8%, e documentário, em terceiro, com 31,1%. A pesquisa coletou 45 respostas de diretoras em 2022 no país.
Os dados evidenciam a dificuldade das diretoras de participarem de projetos além daqueles atribuídos ao universo feminino. “O que está acontecendo na publicidade hoje é que as mulheres estão competindo entre si. E isso não é sobre competição feminina superficial, é sobre uma disputa por projetos reais. Elas estão competindo por trabalhos, enquanto os diretores homens continuam a liderar as produções mais caras e prestigiadas”, destaca Mariana Youssef, diretora de cena na Saigon Filmes, produtora de filmes publicitários criada em 2014, com sedes no Brasil e México.
Assim como em outras indústrias, no audiovisual também existe uma disparidade salarial entre os gêneros. De acordo com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), entre 2011 e 2021, a remuneração média mensal das mulheres do setor era de R$ 4.433,44, enquanto a média dos homens era R$ 5.592,58. São mais de mil reais de diferença.
Para as mulheres atuantes no segmento, não é correto afirmar que a inclusão feminina se limita ao benefício da sensibilidade que ser mulher teoricamente oferece. O diferencial está, na verdade, na conexão com o público-alvo. “Um exemplo disso são os comerciais de absorventes que, por anos, mostravam mulheres em situações irreais. Elas usavam calça branca justa e andavam de bicicleta durante o período menstrual. Isso claramente não ressoa com a experiência real de muitas mulheres”, reflete Marianna Souza.
Nesse contexto, a perspectiva feminina se torna essencial para o desenvolvimento de uma mensagem que se conecte verdadeiramente ao público-alvo do conteúdo publicitário. A premissa se estende a qualquer produto, para além daqueles considerados do universo das mulheres, visto que elas também dirigem carros e bebem cerveja.
Rejane Bicca é diretora de atendimento na O2 Filmes, produtora brasileira fundada pelos cineastas Fernando Meirelles, Paulo Morelli e Andrea Barata Ribeiro, e responsável por grandes filmes como Cidade de Deus, Ensaio sobre a Cegueira e Marighella, e também por séries mais recentes como Manhãs de Setembro e Cangaço Novo, ambas disponíveis na Amazon Prime Video. Rejane reflete como os anunciantes ainda têm receio de incluir mulheres na direção de determinados produtos. “Antigamente, quando eu indicava uma mulher para dirigir um comercial de carro, por exemplo, a resistência era muito mais agressiva. Hoje, mesmo quando recebemos um ‘não’, é um “‘não’ mais educado”.
Em concordância com Rejane, a pesquisa da Free the Work revela um tímido aumento de 6,4% das entrevistadas que afirmaram trabalhar com temáticas variadas. Além disso, 40% das diretoras acreditam que houve um crescimento no volume de pedidos de orçamento em relação a anos anteriores, o que revela uma evolução favorável às mulheres no setor.
Nessa jornada, as ações do Free the Bid e da Free the Work foram essenciais para criar uma demanda por profissionais femininas. O desafio agora é romper com o ciclo vicioso que não oferece oportunidades para diretoras sem projetos de segmentos específicos em seu portfólio.
“Temos mulheres qualificadas e profissionais que estão totalmente à altura. O desafio está em superar o medo das marcas e dos diretores de marketing em arriscar, devido à pressão por resultados”, aponta a presidente da APRO.
Além da necessidade das marcas superarem esse medo, existe também uma demanda de formação e oferta de oportunidades para jovens profissionais. A APRO, por exemplo, tem a iniciativa “Novos Olhares da Publicidade”, em colaboração com o Instituto Criar, que funciona como uma pós-graduação para jovens que concluírem um ano no instituto. O curso permite uma imersão nas dinâmicas do cotidiano de uma produtora, fornecendo uma compreensão aprofundada da indústria e promovendo oportunidades para que os alunos realizem filmes publicitários reais.
A inclusão da diversidade, porém, não pode estar restrita à base. Ela precisa também movimentar o topo da cadeia, como pontua Rejane Bicca. “Acredito firmemente que ao termos mais mulheres em posições de liderança, conseguiremos criar um ambiente mais equitativo”.
Isso inclui não apenas as produtoras e diretoras, mas também as lideranças das marcas. “Como líder, devemos oferecer essa confiança às mulheres em nossa equipe. Acreditamos plenamente que temos o talento, a competência e a habilidade técnica para criar filmes tão impressionantes quanto aqueles dirigidos por homens”, destaca Rejane.
Nesse sentido, Thatiane Almeida, diretora da MAGMACX, produtora de audiovisual brasileira lançada em 2020, reforça a necessidade de abrir espaço para as diretoras que estão no meio há algum tempo. “Percebo que o mercado está progredindo, especialmente quando se trata de abrir portas para novos talentos”, pontua. “Contudo, também vejo que diretoras que já estavam ativas quando comecei a me interessar por cinema ainda têm dificuldades para entrar nas listas principais de talentos em direção”, provoca Thatiane. Em sua visão, as produtoras têm a responsabilidade não apenas de diversificar seu elenco de diretores, mas de promover a carreira de seus talentos femininos.
Para Mariana Youssef, parte da solução do problema é a implementação de um sistema de cotas que inclua mulheres e outros grupos sub representados nas concorrências de projetos audiovisuais publicitários. “A questão é que, embora haja pessoas dentro das marcas e agências que desejem mudar essa realidade, precisamos de algo obrigatório, que seja uma norma”, pontua. Isso inclui não somente a quantidade de filmes dirigidos por mulheres e outros grupos, mas também uma porcentagem do orçamento total de projetos do ano.
Outro ponto importante, também levantado por Youssef, é a necessidade de mapear e divulgar dados relativos à representatividade de gênero, raça, e outros marcadores nesse ecossistema. Nesse sentido, a própria Ancine tem investido em pesquisas, em especial com o programa Aliança Sem Estereótipos, sob coordenação da ONU Mulheres. O movimento busca conscientizar anunciantes e agências sobre a importância de eliminar os estereótipos, em especial de gênero e raça, nas campanhas publicitárias, além de divulgar dados sobre a questão.
Como uma das cabeças do movimento e em posição de poder para promover a mudança, Marianna Souza destaca um passo relevante para o aumento da presença feminina na direção audiovisual.
“Em 2021, firmamos um acordo de cooperação técnica entre a APRO e a ONU Mulheres, estendendo nossos esforços para o programa Aliança Sem Estereótipos. Nosso objetivo é não apenas mudar a representação nas telas, mas também nos bastidores, desafiando a predominância masculina nas posições de base no universo audiovisual. Acreditamos que estabelecer metas concretas, como garantir pelo menos 20% de participação feminina, é essencial para promover essa mudança necessária”.
Estamos em desenvolvimento e existe uma evolução acontecendo. Entretanto, as oportunidades para as mulheres mostrarem seu trabalho em produções com maiores orçamentos e recursos continuam sendo limitadas. “Minha experiência me diz que, se não lutarmos pelas nossas diretoras e pelos projetos que acreditamos, nunca teremos a chance de fazer algo diferente. Minha persistência no passado, embora às vezes tenha enfrentado barreiras, está sendo recompensada hoje”, ressalta Rejane Bicca.
A estrutura é pesada, como placas tectônicas que sustentam um sistema de exclusão e desigualdade. A transformação depende do apoio e da ação conjunta de todos os atores desta indústria. “Acredito que a responsabilidade está nas mãos de várias partes. As agências e os clientes têm um peso considerável, pois são eles que tomam as decisões finais. Mas nós, como criadores, também podemos moldar as estruturas. É uma responsabilidade que deve ser assumida por todos, cada uma à sua maneira, para criar mudanças progressivas”, reflete Thatiane Almeida.
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