Empreendedoras inovam ao desafiar o tabu da sexualidade feminina
De lubrificantes a brinquedos eróticos, mulheres criam soluções para dores femininas às quais o mercado ainda dá pouca atenção
Empreendedoras inovam ao desafiar o tabu da sexualidade feminina
BuscarDe lubrificantes a brinquedos eróticos, mulheres criam soluções para dores femininas às quais o mercado ainda dá pouca atenção
Lidia Capitani
9 de junho de 2025 - 12h00
(Crédito: Shutterstock)
O termo femtech foi cunhado por Ida Tin, cofundadora e CEO da Clue, aplicativo que monitora o ciclo menstrual feminino, em 2013. Femtechs são startups que focam no bem-estar e saúde das mulheres, e que vêm crescendo a cada ano, inclusive no Brasil. Temas que antes eram vistos como tabus, como menstruação e sexualidade feminina, tornaram-se pontos focais para a criação de novas soluções para demandas reprimidas. Estamos falando de um mercado com alto potencial, podendo chegar a valer US$ 1,1 trilhão globalmente até 2027, de acordo com projeções da Femtech Focus e destacado pelo relatório “Femtechs na Saúde”, do Distrito.
No Brasil, este mercado ainda está em evolução. Por aqui, elas já receberam US$ 14 milhões desde 2017 e, apenas em 2022, receberam US$ 10,2 milhões, um crescimento de 560% em relação ao ano anterior, de acordo com relatório do Distrito. Ainda assim, elas enfrentam grandes desafios no ecossistema de inovação: são a minoria entre os fundadores de startups e recebem menos investimentos que seus pares homens.
Menstruação, saúde materna, fertilidade e bem-estar sexual feminino estão entre os principais segmentos que as femtechs abordam. A verdade é que todos falam sobre a saúde da mulher, e cada uma dessas áreas influenciam na outra. “Bem-estar sexual é o entendimento de que a sexualidade é parte fundamental da saúde e das relações das pessoas. Vai muito além do sexo em si: envolve autoconhecimento, cuidado com o corpo, liberdade para experimentar e consciência sobre o próprio prazer”, afirma Larissa Ely, CEO e Creative Director da Climaxxx, sex shop focada no prazer feminino.
Larissa Ely, CEO da Climaxxx (Créditos: Divulgação)
A Climaxxx foi fundada em 2016, num contexto de fortalecimento do movimento feminista. “Surgiu da urgência em repensar os discursos sobre sexualidade e gênero, e de enxergar o mercado do sexo não como algo estritamente ligado ao entretenimento adulto, mas como uma temática de educação, bem estar e descobertas”, explica a CEO.
Historicamente, a saúde, e principalmente o prazer feminino, sempre foram negligenciadas. O clitóris só foi completamente mapeado anatomicamente no início dos anos 2000, pela professora australiana de urologia Helen O’Connell. “O desenvolvimento do Viagra recebeu financiamento massivo e atenção global. Enquanto isso, soluções para o prazer feminino ainda lutam por recursos básicos de pesquisa”, defende Marina Ratton, cofundadora e CEO da Feel e Lilit. “A indústria ainda direciona mais recursos para estética e emagrecimento do que para questões fundamentais de saúde íntima feminina. Isso precisa mudar urgentemente”, continua.
Exatamente para suprir esta demanda reprimida e transformar a forma com que a saúde feminina é tratada na sociedade que surgiram algumas dessas femtechs. A Feel e a Lilit nasceram em 2020 como negócios independentes entre si. Marina à frente da Feel, e Marília Ponte à frente da Lilit. “O interessante é que, mesmo sem nos conhecermos, partíamos da mesma inquietação: a categoria de produtos íntimos femininos estava completamente defasada e desconectada das reais necessidades das mulheres”, conta Marina.
“Desde o início, adotamos uma abordagem centrada na consumidora. Realizamos pesquisas com mais de 4 mil mulheres e os insights foram reveladores: questões como libido, dor, desconforto e odor eram vivências diárias que o mercado simplesmente ignorava”, descreve Ratton. O resultado veio rapidamente: venderam o estoque previsto para três meses em apenas três semanas. E não parou por aí: desde sua fundação, a startup cresceu 50 vezes, dobraram o faturamento e hoje têm uma taxa de recompra de 40%. Isso significa que 40% do faturamento mensal vêm de clientes que retornam, o que reforça o poder desse mercado.
“Apesar de ser um mercado novo, que tem suas barreiras, ele vai crescer. E quem está olhando para isso agora, quem está investindo e se propondo a construir esse segmento com seriedade, tem um futuro muito promissor”, reflete a CEO da Feel e Lilit, que desde 2022 são uma só femtech.
A Désir Atelier, por sua vez, surgiu em 2015, como uma loja de lingerie fundada por Tanise Figueiredo e Bárbara Bastos, sua filha. Para expandir a marca, elas decidiram focar na oferta de brinquedos sexuais para mulheres. “Em 2018, trouxemos a parte erótica e crescemos muito com o foco de vender, além dos toys, autocuidado, autoconhecimento e prazer. A gente queria falar sobre sexualidade de uma forma mais leve, mais natural, como deveria ser”, conta Bárbara.
Tanise Figueiredo e Bárbara Bastos, cofundadoras da Désir Atelier (Crédito: Divulgação)
Desde a pandemia, a sexualidade feminina tem tido maior visibilidade e, por consequência, os negócios com foco no prazer da mulher têm crescido cada vez mais. “Na pandemia, houve um boom muito expressivo sobre o assunto. Com as pessoas em casa, era só o que se falava: as tecnologias, a falta do toque pele a pele e os toys dominando cada cantinho da casa”, avalia Natali Gutierrez, CEO da Dona Coelha.
A Dona Coelha surgiu há 15 anos, a partir de uma experiência pessoal de Natali e seu marido. “Comprei alguns cosméticos sensuais e apresentei cada um deles para o Renan com muito afinco e atenção, mas, na hora de usar, tivemos algumas dificuldades e más experiências. Aí nos questionamos se todos os casais passavam por isso. Resolvemos pesquisar sobre isso e começamos a escrever nosso blog, onde tudo começou, e descobrimos que sim, as pessoas tinham muitas dificuldade nesse quesito”, lembra.
“Levamos informações sérias, conteúdos importantes e relevantes de forma leve, segura e divertida. Com base em pesquisas, criamos e lançamos nossa linha de sex toys para ajudar no autoconhecimento do corpo sem abrir mão de qualidade e preço justo”, complementa Natali.
O objetivo desses negócios é ressignificar a sexualidade feminina, saindo do lugar de tabu e silenciamento, e migrando para o campo do natural. “As startups de sexual wellness são, hoje, protagonistas de uma revolução que alia inovação, diversidade e educação, e têm como missão diminuir as disparidades de gênero quando o assunto é satisfação sexual”, destaca Larissa Ely.
Para além de avançar nas discussões sobre o tema, as empreendedoras da categoria também criam uma conexão especial com suas consumidoras. “Se uma marca ou pessoa fala, quer dizer que outras também passam por aquilo, ou pelo menos sentem que podem falar”, pontua Bárbara. São mulheres criando soluções para mulheres. O lubrificante da Feel, por exemplo, foi desenvolvido não apenas para ser usado durante a relação sexual, mas também no cotidiano de mulheres que sofrem com o ressecamento crônico. “Tem cliente que se abre com a gente de um jeito que não se sente confortável nem no consultório, nem com o marido”, relata Ratton.
Elas apresentam os produtos para as amigas, para as mães, para as filhas e até começam a educá-las sobre a saúde íntima e vida sexual de uma forma que não foi passada a elas. “Após quatro anos liderando a Feel, posso afirmar: somos catalisadoras de uma mudança estrutural. No Brasil, somos uma das raríssimas femtechs fundadas por mulheres que captaram investimento significativo para inovar em saúde íntima. E com 90% do capital vindo de investidoras mulheres. Somos uma exceção dentro da exceção”, relata a CEO.
Se antes a mulher precisava escolher uma opção de lubrificante na gôndola da farmácia entre produtos com cheiros e sensações diferentes, agora, ela consegue escolher um produto que foi desenhado especificamente para a sua necessidade. Quando a Désir decidiu investir no erotismo, as empreendedoras realizaram um benchmark para entender como era a experiência da usuária. O que elas descobriram foi um ambiente totalmente hostil às mulheres. “Tudo escondido, espelho no teto, coisa pendurada, galeria escura, lugar pra homem se masturbar atrás. Era muito pesado”, aponta Bárbara.
“Redefinimos o que significa um produto íntimo feminino, tirando-o da invisibilidade das gôndolas genéricas e transformando-o em item de autocuidado premium. Desenvolvemos com base em 4 mil entrevistas, entendendo que 70% das mulheres já experienciaram dor ou desconforto íntimo. O resultado é um produto que as mulheres exibem com orgulho e não escondem. Isso muda completamente a relação delas com o próprio corpo”, destaca Marina.
Apesar dos avanços, ainda há desafios a enfrentar. O mais comum ainda é o tabu e preconceito em relação ao tema. “Sejam as redes sociais, os algoritmos que não facilitam em nada o trabalho, ou as pessoas que acreditam que sex toys são sempre aqueles toys realistas e com pouco apelo divertido”, destaca Natali.
Natali Gutierrez, CEO da Dona Coelha (Crédito: Divulgação)
Para Marília, era difícil ser levada à sério, mesmo em contextos profissionais. “No começo, tudo caía num lugar de piada, de ironia, de tabu. Em reuniões, por exemplo, era difícil as pessoas entenderem essa linha tênue entre falar de saúde e intimidade sem cair no escrachado, no erótico”, conta. Logo, um dos grandes desafios ainda é educar o mercado.
Além disso, existem também barreiras burocráticas. “A censura nas redes sociais, o preconceito em relação à sexualidade feminina e as dificuldades impostas por falta de regulação e publicidade são alguns dos obstáculos enfrentados diariamente”, adiciona Larissa.
Para a Feel e Lilit, a virada aconteceu quando elas encontraram investidoras mulheres que entenderam a tese e o potencial de suas soluções. “Tem tudo a ver com a emancipação feminina: com mulheres alcançando espaços de poder, de grana, e tendo a autonomia de decidir e dizer: ‘vou investir nessas mulheres’. É um movimento deliberado”, reforça Marina.
Para as especialistas, o tema ainda precisa avançar para mais espaços de visibilidade, que o tratem de forma natural e com seriedade. “Precisamos normalizar o prazer feminino, falar sem culpa, oferecer espaços seguros para as mulheres entenderem do que estamos falando. Quando foi a última vez que o médico te perguntou sobre masturbação ou lubrificação? Isso nunca esteve em pauta numa consulta de rotina”, pontua Gutierrez.
“A sexualidade feminina segue sendo vista sob o viés da performance, da moralidade ou do julgamento. Falta uma educação sexual mais ampla e inclusiva, que valorize o prazer como parte integral da saúde. É preciso combater o machismo estrutural que ainda dita os limites do que é ‘aceitável’ ou ‘feminino’ quando falamos de desejo”, complementa Larissa.
Marina Ratton e Marília Ponte, cofundadoras da Feel e Lilit (Crédito: Divulgação)
Para as empreendedoras, trata-se de entender o prazer feminino como uma questão fundamental da saúde da mulher. “O estímulo adequado impacta o fortalecimento pélvico, a prevenção de incontinência e a qualidade de vida geral. Estamos falando de autonomia corporal e bem-estar, não de luxo ou tabu”, responde Marina. “Lubrificação, por exemplo, para mulheres no pós-parto, que passaram por quimioterapia, que estão na menopausa ou usam anticoncepcionais, é uma questão de proteção e cuidado íntimo, não só de prazer ou de um lugar erótico, performático”, complementa Marília.
Essas empresas estão na vanguarda do avanço desses debates, mas esta batalha não será vencida apenas por elas. “Precisamos de políticas públicas robustas, financiamento para pesquisa, linhas de crédito específicas e compromisso institucional. O ecossistema que possibilitou o Viagra precisa ser replicado para a saúde sexual feminina”, defende Ratton. “O futuro do bem-estar íntimo será construído por quem realmente entende e respeita as necessidades femininas”, conclui Marina.
Compartilhe
Veja também
E se ESG fosse o novo território criativo das marcas?
Keka Morelle, CCO da Ogilvy América Latina, discute a conexão entre ESG e criatividade para marcas e agências
Como o PL do Pai Presente pode beneficiar as empresas?
Estudos apontam que ampliar a licença-paternidade reduz desigualdade de gênero, melhora desenvolvimento infantil e traz vantagens corporativas