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A voz e a vez das criadoras de conteúdo da periferia

Elas conquistam seguidores, quebram estereótipos e mostram para as marcas que a vivência periférica engaja e vende

i 11 de setembro de 2025 - 10h16

Clarissa Crisóstomo, head de agências da Digital Favela, Nathaly Barbosa, Bruna Dias e Stace Hills, influenciadoras (Crédito: Divulgação)

Clarissa Crisóstomo, head de agências da Digital Favela, e as influenciadoras Nathaly Barbosa, Bruna Dias e Stace Hills (Crédito: Divulgação)

Nathaly Barbosa nasceu e cresceu entre duas comunidades do Rio de Janeiro: Rio das Pedras e Cidade de Deus. Hoje, acumula 247 mil seguidores no Instagram, onde é mais conhecida como Blogueira de Baixa Renda, ou simplesmente Blô. Ela começou a produzir conteúdo na internet em 2018 por incentivo dos amigos.

“Minha rotina era pegar muito BRT (ônibus de trânsito rápido) lotado, porque sempre morei na favela, sempre fui pobre, paupérrima. E aí comecei a reparar nos perfis super montados do Instagram: fotos editadas, viagens, carros, vidas perfeitas. Eu pensava: ‘Não é possível que ninguém fale sobre a minha realidade aqui’”, lembra.

A vivência na periferia foi central em sua produção de conteúdo nas redes sociais. “Como falar de Nathalie, pessoa física, sem falar de Blô, pessoa jurídica? Não tem como, porque está completamente conectado. Tudo é uma vertente da minha vivência, da minha experiência. A favela é onde nasci, cresci e me formei como pessoa”, reflete. De acordo com a pesquisa Creators da Favela, da Youpix, dos 20 milhões de criadores de conteúdo no Brasil, 1,5 milhão são da periferia.

Bruna Dias começou a produzir conteúdo em 2017, a partir do seu blog “Dias de Cachos”, que acabou se tornando o nome do seu perfil no Instagram, onde falava sobre sua transição capilar. Hoje, com quase 50 mil seguidores, ela passou a falar sobre outras pautas. “Abordo vários temas. Depois da transição, continuei falando sobre cabelo, mas também trouxe outros assuntos, como a minha vivência corporativa e como é a experiência de uma mulher preta periférica nesse ambiente”, conta.

Maria Eduarda, ou Stace Hills, como é conhecida, tem 473 mil seguidores no Instagram, e vive na zona norte do Rio de Janeiro. Em suas redes sociais, também compartilha sua vivência cotidiana, sempre com tom humorístico. “Nós, que vivemos em comunidades, enxergamos o mundo de um jeito diferente, e isso me deu muito embasamento para os meus vídeos, principalmente de crítica social sobre a forma como vejo o mundo”, diz.

Favela tem voz

“No passado, quando comecei, existia um medo de falar que vinha da favela ou da periferia. As pessoas achavam que o que vendia e fazia sucesso na internet eram coisas muito maquiadas, montadas. Havia também um receio de as empresas não contratarem alguém por ser de onde era”, afirma Nathaly. “Isso mudou graças a nós, criadores da favela, que fomos cortando capim, e mostrando que existem criadores falando de dentro desses locais. Que a favela compra, consome e movimenta.”

De acordo com uma pesquisa da Tendências Consultoria, metade da população brasileira pertencem às classes D e E, e um terço está na classe C. Ou seja, 80% estão nesta faixa, o que significa que boa parte do lucro de muitas marcas vem destas pessoas.

“Elas precisam entender que quem movimenta bilhões de reais por ano somos nós”, destaca Nathaly. “Hoje, o movimento se inverteu. Ser da favela virou legal, virou financeiramente bom. Criou-se até uma onda de pessoas querendo se conectar com esse lugar para gerar conteúdo”, afirma a Blogueira.

Nathaly Barbosa, @blogueiradebaixarenda (Crédito: Divulgação)

Nathaly Barbosa, @blogueiradebaixarenda (Crédito: Divulgação)

A produção de conteúdo para essas pessoas tornou-se uma forma de alcançar a autonomia financeira. Segundo a pesquisa da Youpix, 50% dos influenciadores têm metade ou toda a sua renda composta pela sua atuação na internet. Para além do retorno financeiro, a produção de conteúdo também é uma forma de se empoderar de sua vivência e enxergar valor na sua criação.

“Quando falamos de criação de conteúdo, estamos falando diretamente sobre comportamento e consumo. Trazer o olhar de quem muitas vezes não tem tantas oportunidades ou acessos pode diversificar a linguagem não só nas redes, mas também nas marcas, e contribuir para diversificar o mercado como um todo” , reflete Bruna.

Para Clarissa Crisóstomo, head de agências da Digital Favela, a produção de conteúdo é uma forma de validação pessoal e coletiva. “Quando são reconhecidas, isso traz uma força muito maior para o território, porque valida o trabalho, a arte, a cultura, a música, e mostra que esse conteúdo tem valor”, destaca.

Para o público periférico, em geral, o sucesso é uma conquista coletiva. “Quando alguém vence, não vence sozinho, mas em conjunto. Então, quando uma pessoa consegue avançar, ela abre caminho para levar outras. Isso é fundamental, porque não se trata só de criar e levar para fora do território, mas de subir outras pessoas que estão na mesma situação”, continua.

“Por isso, vejo essa produção de conteúdo como uma oportunidade real de mudança de realidade financeira, não apenas de uma pessoa, mas de um núcleo familiar inteiro. Antes, um influenciador precisava passar 3, 4 horas no trânsito para chegar ao centro de uma capital e trabalhar para receber R$1.320 por mês. Hoje, esse mesmo influenciador consegue ficar em casa produzindo conteúdo sobre a própria realidade e ajudando outras pessoas do mesmo território a criarem conteúdo sobre suas vivências”, afirma Clarissa.

Relação com as marcas

Na avaliação das entrevistadas, as empresas estão mais abertas aos influenciadores periféricos. “As marcas perceberam que se não atuarem nesse público, outras ocuparão esse espaço”, diz Crisóstomo. A Digital Favela atua conectando as marcas com esses territórios. Para a organização, a cocriação é fundamental na estratégia de comunicação.

“O que valorizamos é que os influenciadores tenham liberdade criativa para pegar um briefing de qualquer marca e adaptá-lo à realidade deles”, afirma Clarissa. “Muitas vezes, a marca quer falar com o território, mas não consegue, porque não entende a vivência. Então, a porta de entrada para esse território é vestir a camisa da humildade: a marca pode saber de muita coisa, mas ainda não conhece o comportamento periférico”, continua.

Maria Eduarda, @stace_hills (Crédito: Divulgação)

Maria Eduarda, @stace_hills (Crédito: Divulgação)

Entretanto, nem todas as marcas têm esta visão. “Num país onde 55% da população é negra, colocar pessoas que não têm vivência na periferia para representar produtos consumidos por quem realmente vive lá é problemático. São oportunidades que poderiam estar abertas para nós, que temos esse poder de influência, mas acabam sendo desperdiçadas. Então, para mim, é contraditório. Existem marcas que de fato defendem e levam adiante esse discurso de inclusão, mas muitas falam na teoria e, na prática, fazem diferente”, avalia Stace Hills.

Credibilidade e preconceito

Apesar da produção de conteúdo digital estar cada vez mais democratizada, ainda existem barreiras e desafios que dificultam o crescimento de influenciadores periféricos. De acordo com a pesquisa Black Influence, da Youpix, criadores brancos recebem 12% a mais, em média, do que os pretos. Já segundo a pesquisa Creators da Favela, 6 a cada 10 fizeram trabalhos sem contratos no ano anterior à pesquisa e 29% não têm retorno financeiro desta atuação.

Outro problema é a falta de conexão e entendimento da linguagem usada por esses influenciadores por parte das marcas. São briefings que não condizem com a realidade, ou que não conversam com o público-alvo. O que pode levar à invisibilidade e ao reforço de estereótipos. “Muitos castings continuam muito nichados, sem conseguir acessar outras linguagens e outros influenciadores. Como resultado, criadores periféricos e negros muitas vezes ficam de fora dessas oportunidades”, avalia Bruna.

Para Clarissa, ainda existe muito preconceito sobre o território periférico. “A marca quer contratar alguém da favela, mas espera que a pessoa se comporte de determinada forma, se vista de um jeito específico ou até seja limitada em relação a alguns assuntos, mesmo quando ela tem muito mais profundidade para falar”, pontua.

Clarissa Crisóstomo, head de agências da Digital Favela (Crédito: Divulgação)

Clarissa Crisóstomo, head de agências da Digital Favela (Crédito: Divulgação)

Além disso, existem questões estruturais como qualidade da internet e acesso à serviços postais que aumentam as barreiras da inclusão. “Lembro que em 2020 teve uma chuva de verão, caiu um poste, deu tudo ruim e ficamos uma semana sem energia no Morro do Banco. E isso é real: falta luz, falta internet. Grandes empresas não entram nas comunidades do Rio, então a internet é sempre alternativa e, quando cai, você não tem muito a quem recorrer”, conta Nathaly.

“Apesar de eu morar na Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil, ainda enfrentamos muita dificuldade de acesso. Por exemplo, alguns recebidos não chegam à minha casa, porque aqui não tem correio”, diz Bruna.

O maior desafio, na visão de Clarissa, é a barreira da credibilidade e da necessidade de se provar constantemente. “A gente só não consegue tanto porque muitas vezes precisa escolher entre trabalhar ou criar conteúdo, e precisa correr 30 vezes mais, porque nem sempre dá para viver da internet”, concorda Stace Hills.

Vivência, criatividade e inovação

Apesar dos desafios, os criadores periféricos carregam muitas potências que criam valor para as marcas. A principal delas é a experiência da periferia, que os torna especialistas da própria realidade. “Um exemplo é a Zaxy, do grupo Grendene, que me levou para um workshop no Rio Grande do Sul. E lá aconteceu uma situação que mostra o que um criador pobre e periférico pode agregar. Contei uma história simples: no Morro do Banco, onde cresci, as mulheres gostam de usar rasteirinhas ou saltos, mas para descer o morro, era preciso ter cuidado com o solado do sapato. Se fosse uma rasteirinha ou um tênis sem aderência, você escorregava e caía. E foi aí que falei da Zaxy: por ser de plástico, a sandália tinha um solado que dava aderência. Isso permitia que a gente descesse o morro sem medo de escorregar”, conta Nathaly.

Esse exemplo mostra como um criador periférico consegue entender as dificuldades e necessidades da população do seu território. “Hoje, as marcas estão começando a perceber que a identificação gerada pelo conteúdo criado por moradores de favela realmente movimenta resultados. Em algumas pesquisas que realizamos, vimos que quando as pessoas se identificam, compram muito mais”, defende Clarissa. Apesar dos desafios de credibilidade, o investimento se justifica quando conseguem comprovar que aquele conteúdo gera conexão, engajamento e impacta as vendas.

Além disso, a criatividade é uma habilidade frequentemente alimentada pelo público periférico. “Acho que é a fortaleza da sobrevivência, e essa sobrevivência alimenta a criatividade. Não há outro caminho: não posso não dar certo. Muitas vezes, saímos de lugares em que muitas coisas já não deram certo, e a fortaleza vem justamente de encontrar potência no que se cria e no que se vive”, reflete a head da Digital Favela.

Aliada à criatividade, está a inovação. “Temos, dentro desses territórios, pessoas que já estão inovando constantemente. Essa necessidade de se virar, de se reinventar, é que estimula a criatividade”, pontua Clarissa. “No fim, é sobre encontrar potência para sobreviver criativamente. É um encontro entre a própria potência e existência”, continua.

Menos assistencialismo, mais negócio

Blô incentiva que as marcas contratem os influenciadores periféricos por sua criatividade e potência. “Temos muito a agregar em várias nuances, desde a criação de roteiros até o audiovisual. A galera está engajada, e muitas vezes vejo criadores com menos grana fazendo trabalhos maravilhosos. Precisamos reconhecer nossa força e potência, mostrar para as marcas tudo o que podemos fazer e exigir que nos paguem bem também”, afirma.

Clarissa destaca que não se trata de projeto social, e sim de negócio. “A maior mudança que uma marca pode fazer é deixar de olhar para o território com uma visão assistencialista e passar a enxergá-lo como mercado, porque não estamos falando apenas de pessoas, mas também de clientes”, diz.

Além disso, a líder pontua a necessidade de consistência e trabalhar com o território o ano todo. “Não é só na Black Friday ou em promoções; o território está consumindo o tempo todo, e a marca precisa ser vista e lembrada constantemente, caso contrário, os consumidores esquecem”, pontua.

Bruna Dias, @diasdecacho (Crédito: Divulgação)

Bruna Dias, @diasdecacho (Crédito: Divulgação)

Já para Bruna, as marcas precisam, antes de tudo, escutar. “Sentar com os influenciadores, ouvir o que eles têm a dizer, entender suas dificuldades e tentar solucionar juntos esses problemas para criar um conteúdo que faça sentido para a rede deles ou para uma colaboração. Hoje, cada vez mais, o que precisamos é dessa coparticipação, como se ambos se ouvissem para chegar a um resultado conjunto”, afirma.

Stace é enfática: “Cumpram o que vocês falam e tenham clareza sobre quem é o público de vocês”, ressalta. “Muitas vezes, as marcas não têm em mente quem é o consumidor final. É importante que elas levem até o fim o que pregam e realmente sejam aquilo que dizem. O discurso pode ser bonito, mas quem faz ele andar é o consumidor final”, finaliza.